
Flip 2023 | Leia um trecho de “Autobiografia precoce”, de Pagu
Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Autobiografia precoce”, de Pagu, autora homenageada da Flip 2023.
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Não escreverei aqui hoje sobre a morte ou sobre mortes. Quero escrever sobre a vida, pois há pequeninas flores sob as esbeltas palmeiras, é uma noite com certa aragem respingada finíssima e fria, e o visitante foi embora depois do Porto de honra em homenagem a… Devo guardar um pouco de modéstia. Lembrar, no entanto, a visita de Vida que você me fez, com o seu livro de notas da escola, os resultados de sua obstinação, depois de sessenta dias pregado na cama.
Agradeço, hoje, a visita de Vida que você me fez e a sua bondade, e os seus olhos, e o seu sorriso de criança. E fico pensando na vida das naus que partem deste porto de pedra, que se vão para os seus destinos pela costa, pelas enseadas, um amor em cada porto, um porto em cada trecho de areia, e o sonho que perseguem com as suas velas brancas abertas aos ventos, brancas velas de alvíssimas aves, o olhar audacioso bicando a cortina distante do horizonte. O mais, sim, o mais é a viagem.
Os ventos brancos que enfunam a esperança, a quilha que corta rápida e ligeira, a asa que agora descansa flébil sobre esta parede de vento e vai deixando se levar pela onda e pelo espaço varrido, ondulado. Quem bate? Certamente é você de novo, com as suas notas da escola, seu amor, seu coração e seu carinho no olhar de visita da Vida. Obrigada. Não foi agora você que veio, mas apenas a sua lembrança. Um Porto de honra, pois, ao seu esforço e à sua serenidade.
Rasga essas ondas, vai, cheio de ares importantes de verdade, mas simples no gesto tão amigo, que eu não esperava de você tanta felicidade, minha criatura.
O mais, o mais é estouvamento e o contraste de todos os encontrões pela rua. A mulher que ficou sozinha no apartamento do Flamengo e pensavam que tinha ido viajar. O corretor que…
Não, não quero falar de morte, hoje, pois houve uma grande visita da Vida, e uma visita de ramos de rosas pela testa olímpica, gentil, serena, fagueira. É noite e desejo para o seu sono e o seu descanso todas as aragens silenciosas da terra, as mais leves aragens, uma suave luz azul, um embalo de mar que nem uma berceuse, oleosa, sem ondas e sem dores. Recebe as minhas mãos molhadas desta água do meu mar represado nestas pálpebras, recebe-as, a essas mãos, sobre os cabelos noturnos com que dorme essa cabeça, meu filho. — Pt.
Meu Geraldo,
Seria melhor que tudo fosse deglutido e jogado fora.
Pela prisão, tempo-prisão, mundo que começa no nosso portão. Talvez não valesse a pena a gente passear retrospectivamente. Sempre implica marcha a ré. Sou contra a autocrítica. O aproveitamento da experiência se realiza espontaneamente, sem necessidade de dogmatização.
É que hoje tudo está brilhante. Eu te amo e nada mais tem importância. A exaltação desta manhã de luz cobre toda a inquietação persistente. Você é um homem. Eu sou uma mulher que é sua, meu homem.
O meu corpo quer extensão, quer movimento, quer zigue-zagues. Sinto os ossos furarem a palpitação da carne. As folhas estão verdes. As azaleias morrendo. Esse ventinho doloroso.
Talvez eu não devesse começar meu relatório hoje. Com olhos de sol. Que preguiça de pensar. A longa história cansa.
Não será ainda uma modalidade de fuga? Uma justificativa contra o conhecimento? Quero rolar na areia e esquecer… Se eu tivesse a certeza de que não me custaria nada falar, eu não falaria. Escrever já é um desvio favorável ao esconderijo. No fundo, eu penso na defesa dos detalhes, porque sei que os detalhes justificarão em parte minha maneira de ser. Ou não. A minúcia será o castigo de minha covardia. Minha humilhação está na minúcia.
Por que dar tanta importância à minha vida? Mas, meu amor: eu a ponho em suas mãos. É só o que tenho intocado e puro. Aí tem você minhas taras, meus preconceitos de julgamento, o contágio e os micróbios. Seria bom se eu tivesse o poder de ver as coisas com simplicidade, mas a minha vocação grandguignolesca me fornece apenas a forma trágica de sondagem. É a única que permite o gosto amargo de novo. Sofra comigo.
I I
Na nebulosa da infância, a sensitiva já procurava a bondade e a beleza. Mas a bondade e a beleza são conceitos do homem. E a menina não encontrava a bondade e a beleza onde procurava. Talvez porque já caminhasse fora dos conceitos humanos.
Toda a vida eu quis dar. Dar até a anulação. Só da dissolução poderia surgir a verdadeira personalidade. Sem determinação de sacrifício. Essa noção desaparecia na voluptuosidade da dádiva integral. Ser possuída ao máximo. Sempre quis isso. Ninguém alcançou a imensidade de minha oferta. E eu nunca pude atingir o máximo do êxtase-aniquilamento: o silêncio das zonas sensitivas.
Talvez eu tenha a expressão confusa. Há uma intoxicação de vida. Parece que a paralisia começa desta vez. É difícil a procura de termos para expor o resultado da sondagem. É muito difícil levar as palavras usadas lá dentro de mim. Geraldo, compreenda, por favor.
O estado provisório da não satisfação completa já me legava outra volúpia — a da procura. Assim, tenho andado farejando toda espécie de ideal.
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