
Flip 2023 | Leia um trecho de “Expedição: nebulosa”, de Marília Garcia
Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Expedição: nebulosa”, de Marília Garcia, autora convidada da Flip 2023.
***
história natural
sempre disseram
que eu tinha os olhos
do meu pai
cabelo estatura
queixo caligrafia
— cada coisa de uma tia
os gestos da minha mãe
hoje olho minha filha
e só consigo ver
ela própria:
rosa é uma rosa. é uma rosa
é uma rosa
penso num poema do cacaso
e na américa latina do futuro
que um dia ele quis imaginar
olho para a minha filha
e juntas olhamos para
esta américa latina
do futuro
estamos num túnel de fumaça
e não consigo ver o que aconteceu
paisagem com futuro dentro
todo dia a paisagem é a mesma
mas a cada vez que olho ganha
nova camada
fecho os olhos e agora é paisagem na
memória superfícies
sobrepostas
buscar nessas camadas
um detalhe que venha do futuro
um grão de estrela pairando ali
discreto no ar
uma pequena diferença que mostre
o que está a caminho
ler a paisagem com o futuro dentro
fazer o futuro entrar na linguagem
e me dizer o que não vejo
o chumaço no alto da copa das árvores
por cima o farrapo de nuvem
parece uma nebulosa
ao fundo uma pessoa se deslocando
no mesmo ritmo um pequeno pacote
na mão
agora aperta o passo
abre o guarda-chuva o pacote debaixo do braço
vai com pressa alguma coisa no ar
uma partícula de poeira um cisco
no olho do poema vai me dizer
o que fazer
*
“isso é uma ampola
ou só resto de areia?”
ela pergunta
“por que
você não escreve com
emoção?”
e me oferece uma cadeira para sentar
eu chamo isso de espaço
*
neste poema
há um personagem
que aparece em todos os
poemas:
o tempo
às vezes quase ninguém
nota sua presença
ele fica discreto
no fundo da sala ou
então é um minúsculo
pontinho ao longe atravessando
a paisagem
mas de repente
percebemos no ritmo das
coisas uma espécie de
vaivém de onda guiando
o pensamento
e pronto:
sabemos que é
ele
o tempo
passando enquanto
seguimos cada palavra
ao descer os degraus
dos versos
você que vai lendo
de mãos dadas comigo
confiando
que vamos parar
no fim da
linha
canção da linha
num poema o corte
pode ser só
respiro como às vezes
o salto serve para
seguir
eu me levanto e começo a
falar você se vira
e liga a cafeteira
um estrondo
é como termina
— você disse rima? —
as palavras suspensas
debaixo do som
assim são as coisas
você tenta seguir a linha mas
o corte
a pausa
por que você não escreve com
emoção?
alguém pergunta
e eu amarro a pergunta
na ponta desse poema
deixo tombar até o fundo
do mar
meu coração ficou
ancorado
no mapa de uma cidade
antiga mapa de linhas
esmaecidas
aqui o poema para porque está sem
ar
tenta encontrar uma resposta
mas a âncora vai
descendo
tudo fica muito
escuro
— aqui já dá para fechar
os olhos
ao caminhar
deter os passos para poder continuar
um dia ia pela rua do
sim
mas chegou a hora do não
corto a rota e olho
pra cima
— você viu o avião?
já passou mas vai voltar adiante
agora preciso conter
o movimento da água:
uma lágrima escorre pelo rosto segurar
a gota ou um volume de água
tão grande que encherá
todo o cômodo
num instante
a mãe avança pela água
quero dizer
a mão avança pela água
e a outra segura o fluxo
então é preciso trocar de pista: saltar uma linha
pular uma etapa
agora de novo
a linha se corta
— tudo veio para partir —
e a respiração desiste
o pulso parou
foi o que disseram
diante da janela
ele é alto e verde
fincado num terreno de pedras
pinho pinheiro
parece parado
mas se olho bem sinto um leve tremor
metros de árvore tombando pro
lado é assim que o mundo
acaba:
bang
entendo
que chegou o fim
o que deve sobrar é a cor
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