Flip 2023 | Leia um trecho de “Meu corpo quer extensão”, de Pagu

Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Meu corpo quer extensão”, de Pagu, autora homenageada da Flip 2023.

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Carta para Oswald de Andrade [1929] 

Assinada como Bebé 

 

Jacaré, meu solteirão, 

 

Estou em casa, desoladíssima, presíssima, com 28 correntes fazendo 28 vezes o quarto pra não engordar. A liberdade que me ofereciam? Uma blague. Não pude nem ficar em casa de Conceição porque lá ficava em liberdade de manhã. O papai não decide nada. Uma hora quer que eu vá para Presidente Prudente. Outra hora quer que eu permaneça na prisão Machado de Assis. Quer o seu casamento comigo, mas diz que só posso ver o jacaré no dia. Ele me disse muita coisa má de você: eu não acreditei só porque você disse para eu não acreditar. 

 

Você é que vai me dizer tudo, não é? Só tenho confiança na Sidéria e na Virgínia. 

 

Você tem bebido? 

 

Não pude falar com você. Espero o papai e ficarei só. Quero somente você ao meu lado para dar o primeiro beijo em Pagurzinha. Você foi tão bom… tão bom… para mim. Eu queria o Briquet. 

 

Passar mais uns dias com todo o carinho de você… Perto da sua menininha adorada. Se eu morrer v. pode ficar com Pagurzinha? Eu queria que você ficasse com ela. Se não for assim eu prefiro que ela não viva. Você verá Pagurzinha pequenina e depois nunca mais, nem ela nem eu… 

 

Eu amo demais. Serei como Alma, uma lembrança. Você não esqueceu da cançãozinha de jacarés? 

 

Eu quero o literato e o Nonê. Quando é que você me manda? O Antenor deu o nome do advogado a papai e contou uma história de casamento forjado. Foi você que mandou? 

 

Que pena o Carnaval tão perto. Eu desesperada e só. Quando é que você liberta a pobre prisioneira. 

 

P.S. Se você quer me mandar notícias suas? Domingo você fique em frente ao Teatro Fenix, às três horas da tarde. Eu mandarei alguém lá. Por enquanto não posso sair. Virgínia leva a carta ao correio. É de toda confiança. Mamãe fala de estrangulamentos, mortes, um horror. Eu tou que nem uma fera na jaula. 

 

Bebé 

 

Parque industrial [1933] 

Assinado como Mara Lobo 

 

TEARES

 

São Paulo é o maior parque industrial da América do Sul: o pessoal da tecelagem soletra no cocoruto imperialista do “camarão” que passa. A italianinha matinal dá uma banana pro bonde. Defende a pátria. 

 

— Mais custa! O maior é o Brás! 

 

Pelas cem ruas do Brás, a longa fila dos filhos naturais da sociedade. Filhos naturais porque se distinguem dos outros que têm tido heranças fartas e comodidade de tudo na vida. A burguesia tem sempre filhos legítimos. Mesmo que as esposas virtuosas sejam adúlteras comuns. 

 

A rua Sampsom se move inteira na direção das fábricas. Parece que vão se deslocar os paralelepípedos gastos. 

 

Os chinelos de cor se arrastam sonolentos ainda e sem pressa na segunda-feira. Com vontade de ficar para trás. Aproveitando o último restinho de liberdade. 

 

As meninas contam os romances da véspera, espremendo os lanches embrulhados em papel pardo e verde. 

 

— Eu só me caso com um trabalhador. 

— Sai azar! Pra pobre basta eu. Passar a vida inteira nesta merda! 

— Vocês pensam que os ricos namoram a gente a sério? Só pra debochar. 

— Eu já falei pro Brálio que se é deboche, eu escacho ele. 

— O Pedro está ali! 

— Está te esperando? Então deixa eu cair fora! 

 

O grito possante da chaminé envolve o bairro. Os retardatários voam, beirando a parede da fábrica, granulada, longa, coroada de bicos. Resfolegam como cães cansados, para não perder o dia. Uma chinelinha vermelha é largada sem contraforte na sarjeta. Um pé descalço se fere nos cacos de uma garrafa de leite. Uma garota parda vai pulando e chorando alcançar a porta negra. 

 

O último pontapé na bola de meia. 

 

O apito acaba num sopro. As máquinas se movimentam com desespero. A rua está triste e deserta. Cascas de bananas. O resto de fumaça fugindo. Sangue misturado com leite. 

 

 

Na grande penitenciária social os teares se elevam e marcham esgoelando. 

 

Bruna está com sono. Estivera num baile até tarde. Para e aperta com raiva os olhos ardentes. Abre a boca cariada, boceja. Os cabelos toscos estão polvilhados de seda. 

 

— Puxa! Que este domingo não durou… Os ricos podem dormir à vontade. 

— Bruna! Você se machuca. Olha as tranças! 

 

É o seu companheiro de perto. 

 

O chefe da oficina se aproxima, vagaroso, carrancudo. 

 

— Eu já falei que não quero prosa aqui! 

— Ela podia se machucar… 

— Malandros! É por isso que o trabalho não rende! Sua vagabunda! 

 

Bruna desperta. A moça abaixa a cabeça revoltada. É preciso calar a boca! 

 

Assim, em todos os setores proletários, todos os dias, todas as semanas, todos os anos.

 

Nos salões dos ricos, os poetas lacaios declamam: 

 

— Como é lindo o teu tear! 

 

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