Flip 2023 | Leia um trecho de “Oração para Desaparecer”, de Socorro Acioli

Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Oração para Desaparecer”, de Socorro Acioli, autora convidada da Flip 2023.

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Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou. Bichos alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada, fedida. Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me desfazendo até virar pó. Ninguém sabe o que fazer na hora da morte. 

 

Quando eu já suplicava pelo fim, o buraco me apertou como uma mão gigante de terra, envolveu meu corpo inteiro e começou a me expulsar. Os olhos lacrados, a hora do parto, a boa hora de Nossa Senhora, as palavras se repetiam no pensamento tomado de desespero. 

 

Comecei a sentir os músculos, ossos, nervos, minha pele toda invadida pelo espírito impetuoso de um parafuso, a forma humana preservada, não virei bicho nem pó. Girava para cima com ritmo e firmeza, sem fazer esforço, na pressão lenta da terra, cada vez mais forte ao redor do meu eixo, apertando dos lados, empurrando no meio das pernas, pelas plantas dos pés. O monstro subterrâneo estava decidido sobre meu destino: queria me expulsar dali. 

 

Dois pares de braços surgiram cavando, falando, abrindo espaço para a luz. Buscavam por mim. Duas mãos encontraram meu pescoço, seguraram pelos lados e puxaram com força. Outro par de mãos agarrou minha cabeça. Ouvia suas vozes apressadas comentando como era pesada, cuidado para o pescoço não quebrar e matar de uma vez, puxe o braço com jeito para não arrancar o ombro, que pele fria, será que a criatura está viva? e se sair morta, o que faremos? deixa de asneira, eles saem vivos sempre, você sabe que é assim. 

 

Os dois mudaram a estratégia e me arrancaram pelas axilas com vigor e gemidos de esforço. Atravessei a terra tossindo muito. É uma rapariga, ela disse. Passou um pano molhado no meu rosto e repetia que estava tudo bem, que era preciso calma, enquanto um homem me enrolava em duas mantas, cobria meus peitos e minhas costas. Eu estava nua, com medo e morrendo de ódio daquela mulher me chamando de rapariga. Um sopro gelado no rosto esfriou as gotas na minha pele e parecia congelar. Ainda não enxergava bem, não ouvia com clareza, achava estranhas aquelas vozes, escutava tudo sem entender nada, delirava sobre morrer. 

 

Voltei a enxergar graças ao zelo dela, limpando minhas pálpebras com muita paciência. Meu corpo estava completamente nu e sem pelos em nenhum lugar. Passei a mão na cabeça e gritei, assustei os dois. Estava careca. Os cabelos ficam no caminho, o chão arranca, a mulher disse, mas logo vão crescer, não te preocupes. Falava o essencial e continuava limpando com cuidado, as orelhas, a pele, o pescoço, o dedo enrolado em um tecido fino cutucava os ouvidos. Suas mãos me devolviam a dignidade, seus olhos não largavam de mim.

 

De vez em quando ela pedia que eu não ficasse nervosa, que me acalmasse, que me daria sopa com pão, chá quente e boa dormida. Todos vocês chegam com muita fome, depois dormem uns dias, ela disse, quando acordar arranjaremos sua vida, sem susto nem espanto. Não adiantava tentar me acalmar, tudo era puro assombro. Perguntou se eu conseguiria ficar em pé e colocar meus braços sobre os ombros deles. Estava fraca demais. O homem me pegou no colo e me levou até a casa, perto da cova de onde saí. 

 

Tentei falar, mas tossi de novo. Entramos pela porta de trás e fomos direto para um pequeno quarto, ao lado da cozinha. Os dois me deixaram em uma poltrona larga de couro marrom, forrada com alguns lençóis em um local escuro e bagunçado. 

 

Senta-te aqui, fica parada, não sai por enquanto. É preciso permanecer mais ou menos meia hora sentada para que o sangue volte a correr direito pelo corpo e a pressão regularize, o homem explicou nesses termos. Depois deveria tomar banho. Antes de deixar o quarto ele levantou minhas duas pernas e as apoiou em um pequeno banco, também forrado com uns trapos manchados, dizendo que era para ajudar a ativar a circulação. Abriu uma maleta de couro e me examinou com aparatos de médico. Respiração. Lanterna nos olhos e ouvidos. Aperto no braço, na barriga com sua mão fria e avermelhada. Disse que parecia estar tudo bem, por enquanto, só muito suja por dentro, mas iria melhorar com os dias. 

 

A mulher voltou com outra toalha, limpando meus pés. Eu seguia atenta às temperaturas, à benevolência dos exames do doutor, à certeza dos olhos dela. Na parede ao lado da cama havia um batente alto de alvenaria cheio de velas antigas, de cores e de formatos diferentes, ceras derretidas, retorcidas, pavios dormindo. Ela acendeu algumas antes de sair, deixou fogo e luz. Senti cheiro de estrume, passei muito tempo com aquele fedor de enterro por dentro do meu nariz, mesmo dias depois de estar limpa. 

 

Um pouco de chá amargo, um prato de sopa e um pedaço de pão. Foi a primeira refeição que fiz com eles, enquanto me observavam. 

 

— Deixa a chávena aqui na mesa, assim tu tomas a sopa na bandeja com mais jeito. 

 

Eu não sabia o que era chávena. Quase bebi a sopa direto do prato, de tanta fome. Comi o pão de uma vez e ainda tossia, engasgava, mas o desespero pela comida era maior. O chá quente dissolveu a terra da garganta, um alívio. 

 

Agora podes tomar banho, ela autorizou, arrumando na cadeira ao lado da banheira um pijama de flanela azul, de tamanho bem maior que o meu; um par de meias, um vestido preto, um casaco verde, roupa de baixo, um pedaço de sabão. Enquanto eu comia, eles encheram uma banheira com água tão quente que fumaçava, ali dentro do quarto mesmo. Faziam tudo juntos, sincronizados, pareciam treinados para aqueles gestos de cuidar de uma morta-viva. A água caía na banheira de ferro antiga e de pés elegantes. Ao lado havia uma cama e um baú. 

 

— Demora-te no banho, lava as partes todas, esfrega-te com esta esponja. Tenho outras, arranjei um pacote quando soube que tu chegarias, podes usar tudo. Limpa os dentes, é importante tirar a sujeira das gengivas também. Descansa, depois do banho tu podes dormir, a cama está pronta. 

 

Ela adivinhou meu desejo de falar e avisou que não seria bom fazer muito esforço nos primeiros dias. 

 

— Eu sou Florice. Este é o doutor Fernando, meu marido. Ele é médico, saberá fazer o que for preciso para recuperar tua saúde. Depois tu me dizes o teu nome. 

 

Seria impossível descansar com tanto nojo da minha imundície. Tirei os panos de cima de mim e entrei na banheira para passar o frio, o corpo nu, tonto e fraco, sem equilíbrio. Fechei os olhos dentro da água, a perfeição da temperatura, um lago de alívio sob a luz das velas. Parecia lógico e prudente aceitar que algo gravíssimo acontecera.

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