Flip 2023 | Leia um trecho de “Pagu”, de Augusto de Campos
Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Pagu”, de Augusto de Campos, ambos homenageados da Flip 2023.
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Não se trata de forjar uma escritora ou uma artista. Patrícia Galvão foi uma e outra coisa, sem propriamente fazer carreira de letras ou de artes. Assim como foi poeta, sem o ser em termos profissionais, se de profissão se pode falar a respeito de poesia. Amadora em artes. Amadora de artes. Trata-se de recuperar a imagem de uma rebelde da vida e das artes, de captar as fulgurações intermitentes mas lúcidas de uma personalidade rara, dentre as poucas que lutaram por manter acesa a chama de inconformismo que, a partir de 1922, incandesceu o nosso provinciano ambiente cultural.
Emergindo, ainda muito jovem, no contexto do modernismo, Patrícia Galvão — pseudônimo, Pagu — estreia de maneira insólita, sob a dupla influência de Oswald de Andrade e de Tarsila do Amaral, na Revista de Antropofagia, em sua fase mais revolucionária, a da chamada “segunda dentição”. Lançada em maio de 1928, a revista entrara em sua nova fase a partir de 17 de março de 1929, quando passou a ser publicada como página especial do Diário de São Paulo. Desligando-se de Mário de Andrade, Antônio de Alcântara Machado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Plínio Salgado e outros, e tendo como plano piloto o “Manifesto Antropófago” que Oswald fizera publicar no primeiro número da revista (“primeira dentição”), os “antropófagos” radicais desencadeiam uma campanha tenaz contra a acomodação e o conservadorismo que sentem infiltrar-se nas hostes modernistas e diluir os aspectos mais contestatários e experimentais do movimento de 1922, em termos de ideologia e de linguagem.
É nesse momento explosivo que Patrícia, com apenas dezoito anos, tem o seu primeiro trabalho — um desenho — publicado no segundo número da revista, no Diário de São Paulo de 24 de março de 1929. Dois outros desenhos seus seriam estampados no oitavo número (8 de maio de 1929) e no segundo número (19 de junho de 1929), este último acompanhado de um pequeno texto poético e da informação: “Legenda e figura de Pagu (do Álbum de Tarsila)”. Seus companheiros, artistas plásticos, nos dezesseis números que teve a revista-página, seriam nada menos que Di Cavalcanti, Cícero Dias e Tarsila. Esta inaugura o primeiro número da segunda dentição com um desenho no estilo do “Abaporu” (Antropófago), tal como o fizera no primeiro número da primeira dentição ilustrando o manifesto de Oswald, e comparece ainda com desenhos ou reproduções de quadros em mais cinco páginas da revista. Depois de Tarsila, é Pagu quem mais colabora.
Discípula confessa de Tarsila, manifesta o seu entusiasmo por ela numa entrevista concedida à revista Para Todos…, por ocasião da primeira exposição individual da pintora, no Rio de Janeiro, em 1929. Quando lhe perguntam quais as suas admirações, responde Pagu: “Tarsila, Padre Cícero, Lampião e Oswald. Com Tarsila fico romântica. Dou por ela a última gota do meu sangue. Como artista só admiro a superioridade dela”. A mesma entrevista revela que Pagu, diferentemente da pintora, alimenta pretensões literárias. Indagam-lhe se tem livro a publicar:
Tenho: a não publicar: Os Sessenta poemas censurados que eu dediquei ao dr. Fenolino Amado, diretor da censura cinematográfica. E o Álbum de Pagu: Nascimento, vida, paixão e morte — em mãos de Tarsila, que é quem toma conta dele. As ilustrações dos poemas são também feitas por mim.
É a esse Álbum que alude, por certo, a nota do décimo primeiro número da Revista de Antropofagia, ainda que o desenho e o texto não venham a integrá-lo. Dos “poemas censurados” lamentavelmente não há notícia, embora talvez deles fizesse parte o poema transcrito na entrevista, que agita, provocativo, uma “bandeira de calças rendadas no varal”.
Descoberto, há poucos anos, por José Luís Garaldi, entre alguns documentos de Tarsila, que ficaram com seu sobrinho Oswaldo Estanislau do Amaral, o Álbum de Pagu nos coloca diante da produção mais consistente da poeta-desenhista, entre os dezoito e os dezenove anos, em plena efervescência antropofágica. Divulguei-o na revista baiana Código no 2, em 1975, e, mais recentemente, na revista Através no 2, publicada em 1978 pela editora Duas Cidades.
Trata-se de um conjunto de “poemas ilustrados”, formando uma sequência, com 28 páginas numeradas. Título: Pagu. Subtítulo: Nascimento, vida, paixão e morte. A marca de Oswald e de Tarsila é evidente, tanto mais ao se ter em vista que o Primeiro Caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, com desenhos do poeta e capa de Tarsila, é de 1927. Mas a eleição de tais influências pela jovem Pagu já é um ato de discernimento e de sensibilidade fora do comum. Por amadorísticos que se mostrem os seus desenhos, na insegurança do traço e na ingenuidade ou no “kitsch” modernista de certas soluções, o Álbum é, ainda assim, espantoso como ideia e como realização. A linguagem ao mesmo tempo descontraída e econômica de textos e ilustrações é atrevida para o seu tempo e, ainda hoje, cheia de vitalidade. O texto dialoga com a ilustração e por vezes a invade, como no desenho da página 24, onde a palavra escarro aparece escrita no banco em que está sentada Pagu. Nem se vê diferença marcante, quanto à linguagem dos textos, entre poesia, prosa e legenda, todos eles tingidos de malícia e sensualidade, a começar pela paródia ao indianismo no “Nascimento de Pagu”: “Além… muito além do Martinelli”, que ecoa o “Além muito além daquela serra… nasceu Iracema”, para concluir: “O pai dela gosta de bolinar nos outros… E Pagu nasceu…”. Serafim e Macunaíma. Nenhuma outra mulher-poeta brasileira ousara tanto. E muitos outros poetas, antes ou depois do modernismo, nem chegaram perto.
Os “poemas ilustrados” de Pagu estabelecem um inter-relacionamento entre as linguagens verbal e não verbal que convoca para a poesia elementos das “charges”, dos anúncios, das histórias em quadrinhos, do cinema e de todo o universo visual modernista. Tudo isso faz do Álbum, além de precioso documento “antropofágico”, uma experiência instigante, por não se poder definir isoladamente nem como poesia nem como desenho, ficando a meio caminho entre essas artes, naquela zona incatalogável que hoje se chamaria de “intermédia”. É a área de trabalho artístico onde se situam as propostas de interpenetração de disciplinas antes hierarquicamente separadas, e que tem talvez em John Cage, músico de profissão, dos maiores do século, poeta e artista plástico “amador”, de enorme criatividade, o seu mais exemplar praticante.
Outro testemunho das atividades de Pagu, desenhista, é o bico de pena que aparece ilustrando a entrevista de Para Todos… — uma quase caricatura do rosto de Tarsila —, preciso na enxutez com que a ideogramatiza em cabelo-pestanas-boca-brincos, a partir do conhecido autorretrato da pintora, de 1924.
Um novo documento das incursões de Patrícia no domínio das artes visuais será o desenho do título da seção A Mulher do Povo, no jornal O Homem do Povo, que edita com Oswald, na fase comunista, em 1931. As letras são desenhadas num traçado livre, em tipos art déco, rematados com figurinhas abreviadas de mulher, que gestualizam o discurso. É provável que ela tenha interferido também na diagramação, que às vezes tem soluções interessantes, como a espacialização da palavra “pagu”, cobrindo toda a extensão da linha no artigo a baixa da alta, título e nome em caixa-baixa.
Dez anos de militância política, de exílios e prisões, nos devolveriam uma outra Patrícia Galvão, no pós-guerra da década de 1940. Que se saiba, não voltou ela à “persona” da apaixonante “musa antropófaga”, que acabara roubando Oswald a Tarsila, trocando, de parceria com ele, o “sarampão antropofágico” pela luta de classes e lançando, em 1933, Parque Industrial, com o subtítulo Romance proletário.
A partir de 1940, já desvinculada do comunismo, que repeliria em dramático documento — o panfleto político Verdade e Liberdade (1950) —, retornou Patrícia aos seus interesses artísticos, passando a desenvolver intensa atividade jornalística, como cronista, articulista, tradutora e, eventualmente, poeta. No jornal A Noite, do Rio, assinou crônicas literárias, sob o pseudônimo de “Ariel”, em 1942. No Diário de São Paulo, de 1946 a 1950, colaborou com Geraldo Ferraz no Suplemento Literário, publicado aos domingos, escrevendo crônicas sob o título genérico de Cor Local e contribuindo com textos críticos e traduções para a seção “Antologia da Literatura Estrangeira”, precursora da série “Fontes e correntes da poesia contemporânea”, que Mário Faustino publicaria, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, entre 1956 e 1958. Em tradução de Patrícia, foram divulgadas páginas fundamentais, algumas delas pela primeira vez em português, como o estudo de Valéry sobre “Un Coup de dés” de Mallarmé ou um trecho do Ulysses de Joyce.
Não obstante seja ainda difícil lograr uma perspectiva cabal da atuação de Patrícia, dispersa por jornais e revistas, que incluem a Vanguarda Socialista de Mário Pedrosa e Geraldo Ferraz, em 1945,1 e A Tribuna, de Santos,2 nos últimos anos (ela morreu em 1962), pode-se ter uma medida da amplitude de seus interesses pelas crônicas que publicou, de 1950 a 1953, no jornal Fanfulla, editado em São Paulo. Graças ao trabalho de pesquisa de Erthos Albino de Souza, pude conhecer a primeira safra dessas crônicas (1950-51), que compunham a série “De arte e de literatura”3 e foram precedidas por outra, em geral titulada “Duas faces do mesmo dia”, tratando de política nacional e internacional.
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