Flip 2023 | Leia um trecho de “Parque industrial”, de Pagu

Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Parque industrial”, de Pagu, autora homenageada da Flip 2023.

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TRABALHADORAS DE AGULHA

 

Rua Barão de Itapetininga. Sorvetes e modelos falsos no meio-dia de costureiras. 

 

Em frente à Viennense, grandes vitrinas aveludadas onde uma echarpe se perde. 

 

Elas têm uma hora para o lanche. Madame saiu de automóvel com o gigolô. 

 

Na rua movimentada, cabecinhas loiras, cabecinhas crespas, saias singelas. 

 

Otávia se apressa. Atravessa a rua entre ônibus, entra num café expresso, pega a xícara encardida, toma rapidamente o café. Agora, a um canto, diante de um sanduíche duro, folheia um livro sem capa. Não percebe a população flutuante do bar que olha para ela. 

 

— Otávia! 

— Você sumiu, Rosinha! E a fábrica? 

— Desmascaramos o contramestre quando queria furar a greve. Me botaram na rua. Uns dias de fome… Me chamou de criança industriada! Filho da mãe! 

— Pega sanduíche. 

— Agora estou na Ítalo. 

 

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Corina é a última a voltar ao ateliê. Um largo cinto de oleado arde, vermelho, no mesmo vestido de sempre, velho. 

 

A boca farta de beijos. O bronze de sua cabeça saturada de alegria está mais bronzeado. As pernas se alçam, com rasgões nas meias, sobre saltos descomunais. 

 

Traz um braseiro nas faces e um lenço novo, futurista, no pescoço. 

 

O barulho das máquinas de costura recomeça depois do lanche. No quarto escurecido por gobelins, as doze mãos têm por par um pedaço de pijama separado. 

 

Madame, enrijecida de elásticos e borrada de rímel, fuma no âmbar da piteira o cigarro displicente. Os olhos das trabalhadoras são como os seus. Tingidos de roxo, mas pelo trabalho noturno. 

 

— O meu pijama é para amanhã. Vai ser um colosso de intimidade a minha festa! Vou fazer furor aparecendo de pijama aos convidados! Vou ser a iniciadora das noites íntimas. Os jornais hão de falar. O primeiro time vai gozar! 

 

Numa inveja deslumbrada da festa a que não pode assistir, a modista na loja escancara a platina dos dentes remendados. 

 

Uma menina pálida atende ao chamado e custa a dizer que é impossível terminar até o dia seguinte a encomenda. 

 

— Que é isso? — exclama a costureira, empurrando-a com o corpo para o interior da oficina. 

— Você pensa que vou desgostar mademoiselle por causa de umas preguiçosas? Hoje haverá serão até uma hora. 

— Eu não posso, madame, ficar de noite. Mamãe está doente. Eu preciso dar o remédio pra ela. 

— Você fica! Sua mãe não morre por esperar umas horas. 

— Mas eu preciso! 

— Absolutamente. Se você for é de uma vez. 

 

A proletária volta para o seu lugar entre as companheiras. Estremece à ideia de perder o emprego que lhe custara tanto arranjar. 

 

Madame corre de novo acompanhando a freguesa que salta para um automóvel com um rapaz de bigodinho. 

 

As seis costureirinhas têm olhos diferentes. Corina, com dentes que nunca viram dentista, sorri lindo, satisfeita. É a mulata do ateliê. Pensa no amor da baratinha4 que vai passar para encontrá-la de novo à hora da saída. Otávia trabalha como um autômato. Georgina cobiça uma vida melhor. Uma delas murmura, numa crispação de dedos picados de agulha, que amarrotam a fazenda. 

 

— Depois dizem que não somos escravas! 

 

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4 Inicialmente o termo se referia ao automóvel Ford 1929, apelidado de “baratinha”, mas depois passou a ser usado para outros carros de pequeno porte nos anos 1930. 

 

O largo da Sé é uma gritaria. Voltam cansadas para os seus tugúrios as multidões que manipulam o conforto dos ricos. 

 

Os jornais burgueses gritam pela boca maltratada dos garotos rasgados os últimos escândalos.

 

O camarão capitalista escancara a porta para a vítima que lhe vai dar mais duzentos réis, destinados a Wall Street. 

 

O bonde se abarrota. De empregadinhas dos magazines. Telefonistas. Caixeirinhos. Toda a população de mais explorados, de menos explorados. Para os seus cortiços na imensa cidade proletária, o Brás. 

 

O camarão para ofegando, segue. Otávia, Rosinha Lituana, Corina, Luiz, Pepe. 

 

Luiz e Pepe são caixeiros de camisaria na rua Direita. 

 

Otávia não perde um momento. Lê. É um livro de propaganda. Simples como uma criança. Cruza as pernas infantis nas meias ordinárias. 

 

Rosinha Lituana acompanha a integração revolucionária da companheira e passeia os olhos pelos bancos. Corina é a única isolada, de olhos fechados. A cabeça pintada, na boina azul. Acha pau o proselitismo das outras. Julga a vida um colosso! 

 

Uma criança lambuzada de açúcar esfrega um doce na boca sem dentes. 

 

O vento faz voar todos os cabelos do bonde. 

 

Corina acorda na rua Bresser. Desce. Sorri para as colegas de oficina. Vai para a Vila Simione. Há rapazes na esquina. Os olhos descem, procuram-lhe as pernas boas. 

 

Pepe gosta de Otávia. 

 

— Você vai hoje no Mafalda?5 É sessão das moças. Dão o Ricardo Bartélmes! 

— Não posso. Trabalho de noite. 

— Que pena! 

 

Separam-se nas portas vizinhas da rua João Boemer. 

 

■ 

 

— Cadê o dinheiro, Corina? 

— Gastei. 

— O Florino te pega. Corina pensa no amigo repugnante da mãe. 

— Eu já estou cansada de trabalhar para um pau-d’água que não é meu pai. Preciso comer logo e voltar para a oficina. 

— Não tem jantar. 

— E o dinheiro do gramofone? Florino, bêbado e gordo, aparece no portão da vila. O ventre muda de lugar, balançando. Agita a bengala de pau. Quer dar nos moleques que o seguem. Não acerta. Os garotos infernais desejam que ele caia. 

— Bêbado! Bêbado! 

 

Duas mãos nodosas agarram o pescoço da mulata velha. Corina esconde a cena com a porta. Está acostumada. Sai. Modifica o batom, sorrindo no espelho da bolsa. Toma o 14. 

 

A rua vai escorrendo pelas janelas do bonde. 

 

5 O Theatro Mafalda, então localizado no Brás, em São Paulo, era uma pequena casa de espetáculos que também exibia filmes. 

 

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— Vou sim! Mas amanhã levo pito na oficina. 

 

A garçonnière de Arnaldo abre para ela o seu segredo desejado. Mais uma no divã turco. 

 

Também tanta gulodice! Tanta coisa gostosa para aquele estômago queimando de jejum. Uma garrafa aberta. É tão simples. Uma cabeça inexperiente nos almofadões, sonolenta. As bocas sexuais se chupam. As pernas se provocam.

 

Choro súbito e toilette. Arrependimento, medo, carícias.

 

Corina acha o amante frio na despedida. 

 

— Não conte para ninguém. Choro na oficina. As outras pensam que é por causa do padrasto terrível. 

 

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Rosinha Lituana e Otávia se separam na porta enorme e movimentada da Fábrica de Sedas Ítalo-Brasileira. 

 

— Cháo! 

— Mesmo que custe a vida… 

— Que importa morrer de bala em vez de morrer de fome

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