Flip 2023 | Leia um trecho de “República surda”, de Ilya Kaminsky

Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “República surda”, de Ilya Kaminsky, autor convidado da Flip 2023.

***

PRIMEIRO ATO

Os moradores da cidade contam a história de Sonya e Alfonso

 

Tiro 

 

Nosso país é o palco. 

 

Quando os soldados marcham em direção à cidade, aglomerações públicas são oficialmente proibidas. Mas hoje os vizinhos estão reunidos na praça Central, ao som do piano, no espetáculo de marionetes de Sonya e Alfonso. Alguns de nós subiram em árvores, outros se esconderam atrás de bancos e postes telegráficos. 

 

Quando Petya, o menino surdo na fileira da frente, espirra, a marionete de sargento se estatela gemendo. Logo volta a se levantar, bufa e mexe os punhos, ameaçando a plateia que está rindo. 

 

Um jipe do Exército dá uma guinada e entra na praça, lá despachando o seu próprio Sargento. 

 

Dispersar imediatamente! 

Dispersar imediatamente! — a marionete gesticula em falsete de madeira. 

 

Todos gelam, exceto Petya, que continua soltando risadinhas. Alguém tapa a boca dele. O Sargento se vira para o menino, erguendo o dedo. 

 

Você! 

Você! — a marionete ergue o dedo. 

 

Sonya olha para sua marionete, a marionete olha para o Sargento, o Sargento olha para Sonya e Alfonso, mas o restante de nós está olhando para Petya, que reclina a cabeça, junta toda a saliva de sua garganta e dá uma cusparada no Sargento. 

 

O som que não ouvimos faz as gaivotas na água alçarem voo.

 

Enquanto os soldados marcham, Alfonso cobre o rosto do menino com jornal 

 

Catorze pessoas, quase todos nós desconhecidos, 

olhamos Sonya ajoelhada ao lado de Petya 

 

baleado no meio da rua. 

Ela apanha os óculos, que brilham como duas moedas, equilibra-os no nariz dele. 

 

Observe este momento 

— tudo convulsiona — 

 

A neve cai e os cães correm pelas ruas feito enfermeiros. 

 

Somos catorze olhando: 

Sonya beija a testa dele — seu grito é um buraco 

 

rasgado no céu, faz tremeluzir os bancos do parque, as luzes da varanda. 

 

Vemos na boca aberta de Sonya 

 

a nudez 

de toda uma nação. 

 

Ela se estira ao lado do bonequinho de neve que cochila no meio da rua. 

 

Enquanto cata a barriga dele, o país dispara.

 

Alfonso, na neve 

 

Você está vivo, sussurro para mim mesmo, então algo em você escuta

 

Alguma coisa é atropelada na rua, cai, não consegue se levantar. 

Eu corro et cetera com minhas pernas e mãos atrás 

da minha esposa grávida et cetera pela rua Vasenka eu desço 

leva só uns minutinhos et cetera para se tornar um homem.

 

Começa a surdez, uma insurgência 

 

Nosso país acordou no dia seguinte e se negou a ouvir os soldados. 

 

Em nome de Petya, nos negamos. 

Às seis da manhã, quando os soldados elogiam as garotas na ruela, elas se esquivam, apontando para as orelhas. Às oito, a porta da padaria fecha na cara do soldado Ivanoff, embora ele seja o melhor cliente. Às dez, Mamãe Galya escreve ninguém pode ouvir vocês nos portões do quartel dos soldados. 

Antes das onze, as pessoas começam a ser presas. 

Nossa audição não diminui, mas algo silencioso se fortalece em nós. 

Após o toque de recolher, as famílias dos presos penduram marionetes artesanais nas janelas. As ruas esvaziam, a não ser pelo rangido das cordas e o toc toc dos pés e punhos de madeira batendo nos prédios. 

 

Nos ouvidos da cidade, a neve cai.

 

Alfonso é o responsável 

 

Meu povo, vocês foram mesmo muito foda 

na manhã das primeiras prisões: 

 

nossos homens, antes amedrontados, atados às camas, agora 

[se levantam como mastros humanos — 

a surdez nos atravessa como um apito policial. 

 

Aqui declaro 

então: 

 

cada um de nós 

chega em casa, grita com a parede, o fogão, a geladeira, consigo

[próprio. Perdoe-me, eu 

não fui honesto com você, 

vida — 

 

para você eu sou o responsável.

 Eu corro et cetera com minhas pernas e mãos et cetera desço 

[a rua Vasenka correndo et cetera — 

 

Quem quer que esteja ouvindo: 

obrigado pela pluma em minha língua, 

 

obrigado por nossa discussão terminada, obrigado pela surdez, 

Senhor, esse fogo 

 

de um fósforo por ti nunca aceso.

 

Aquele mapa de osso e válvulas abertas 

 

Vi o Sargento mirar, o menino surdo engolir ferro e fogo —

[seu rosto no asfalto, 

aquele mapa de osso e válvulas abertas. 

É o ar. Alguma coisa no ar nos quer demais. 

A terra está quieta. 

Os vigias da torre comem sanduíches de pepino. 

Neste primeiro dia 

soldados examinam os ouvidos de atendentes de bar, 

[contadores, soldados — 

as coisas cruéis que o silêncio faz aos soldados. 

Arrancam da cama a esposa de Gora como se arrancassem a 

[porta de um ônibus. 

Observe este momento 

— tudo convulsiona — 

O corpo do menino jaz no asfalto como um clipe de papel. 

O corpo do menino jaz no asfalto 

como o corpo de um menino. 

Eu toco as paredes, sinto o pulso da casa e olho 

para cima emudecido sem saber por que estou vivo. 

Andamos pela cidade na ponta dos pés, 

Sonya e eu, 

entre teatros, jardins, portões de ferro forjado — 

Seja corajoso, dizemos, mas ninguém 

é corajoso, enquanto um som que não ouvimos 

faz os pássaros na água alçarem voo.

 

Os moradores da cidade cercam o corpo do menino 

 

O corpo do menino morto ainda jaz na praça. 

 

Sonya o abraça por trás, no cimento. Dentro dela, dorme a bebê. Mamãe Galya leva um travesseiro para Sonya. Um homem de cadeira de rodas leva um galão de leite. 

 

Alfonso se deita ao lado deles na neve. Envolve um braço na barriga de Sonya. Põe a outra mão no chão. Ouve carros parando, portas batendo, cães latindo. Quando tira a mão do chão, não ouve nada. 

 

Atrás deles, uma marionete está estendida no cimento, a boca se enchendo de neve. 

 

Quarenta minutos depois, amanhece. Os soldados retornam à praça. 

 

Os moradores da cidade cruzam os braços entre si formando um círculo fechado, e outro círculo ao redor desse, e mais outro círculo para manter os soldados longe do corpo do menino. 

 

Vemos Sonya se levantar (a bebê dentro dela estica a perna). Alguém lhe deu uma placa, que ela ergue muito acima da cabeça: o povo está surdo.

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