
Flip 2023 | Leia um trecho de “Veludo rouco”, de Bruna Beber
Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Veludo rouco”, de Bruna Beber, autora convidada da Flip 2023.
***
Luziê
Pai celestiá
ninguém sabe quem varre nossas porta
Se vento ventoso, vento de arrasá
ou vento de ninar cantiga
Por isso santa Rita nóis canta
advindo disso santa Rita nóis reza
que na girada do olho o bem devora
Mais ói santa Rita chegáru tuas visita
Viéru de cavalo
cavalo de cavalgado
O branco não qué iludido
o preto sim que sabe vagueá.
Promissões
Passei os cinco primeiros anos de vida
de molho no permanganato de potássio:
A pele é muito grande, o bicho rói
Aos sete fui promovida ao tanque de cimento
e vovó me banhava e gargalhava e dizia
Tem que aprender a descascar laranja
Quando fiz uma década, ganhei uma faca
a primeira, faquinha, cortei o dedo
no osso e pedi para ser pintada
Ela foi capengando e fingindo à terceira porta
da cômoda onde reinava, em sigilo, o banho
de luz: Melhor é um copo de vinho
Aos sábados batida de coco. Aos domingos
chupar peixe com pratada de grão-de-bico:
Agora um cálice de licor de jenipapo e cama
Comíamos figos, pêssegos em calda, sorvete
de passas ao rum; mais cochilo: Eu sonhei
com avencas e samambaias se abraçando
No meu sonho todas as casas tinham um pé
de nêspera, de dia colhia-se manga-espada e
cajá e crianças roubavam romãs da vizinha
Acorda e vai beber água da bica!
Fazíamos alongamento pro corpo crescer, a pele
colar no corpo e os músculos segurarem os ossos
Vovó nunca cantou uma música, mas gostava
do bailado, e nele me ensinou a rezar Na vida
se agradece a comida, a bebida, o sono e a saúde
Na cata do feijão recompúnhamos as propriedades
matemáticas; gostava de ouvi-la narrar plantações
de arroz: Tudo é, tudo está, tudo vai e chegará
Vovó não aprendeu a ler, ensinou a natureza.
Meses antes de se encantar, aos 92, inda soprou
Agora que sou criança já posso descansar
Casarões
O coração é o povoado da memória;
aparentado com o fígado é o sentimento
a indignação ocupa o estômago
mas o desejo faz do pulmão um pomar
A cabeça é inquilina
ou proprietária do corpo,
e quem morre primeiro?
Angular
O que os meus mortos não sabem e nunca vão ouvir falar
é que ainda estou de pé e sorrindo em uma cena perdida
no passado de suas vidas; cores-sombras, vivos, sorrindo
dentro da minha vida. De manhã, ao derramar o café
fora da xícara, ainda sou criança e ouço o tlectlectlec
da máquina de escrever da minha tia. Vovó cruzou
a copa pela porta da cozinha, com pressa, sozinha
sobre a fúria de quem vai socorrer a carne assada
A porta do quarto bate, eu salto, um quadro
cai da parede na escrivaninha, a geladeira
esguicha. Ondas. Calor e energia. Não sabem
não querem, não pedem, mas deslizam e eu
rastejo na eletricidade — um sopro, um eco
um traço, um tique — das palavras, da estada
permanente das palavras que disseram um dia
Ainda não terminei o café, tampouco sinto saudade
pois sei que assim que me levantar desta mesa
vou reviver o mundo em altura e graça
sentada na cacunda do meu tio
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