Garoa e estrelas

29/10/2021

 

“Não é uma chuvarada, é uma garoa.” Foi o que a minha filha de 3 anos disse ontem. Tentei explicar que estava chovendo forte e que seria garoa se estivesse só chuviscando. Mas na escola tinham explicado que estava garoando, ela falou encerrando o assunto. Sempre soube que garoa era uma chuvinha leve; por outro lado, já ouvi dizer que antigamente é que fazia frio aqui e que o “São Paulo da garoa” andradiano já nem existe mais.

Será que, por conta das mudanças climáticas, garoa ganhou nova carga semântica? Foi o que fiquei me perguntando, afinal, minha filha é paulistana e “garoa” é uma palavra paulistana usada para descrever um fenômeno que só tem aqui, como o fog londrino ou a canicule parisiense. Se no dia mais frio do ano no Rio de Janeiro, o ar ficar úmido demais de manhã cedo e der uma leve sensação de chuva, eu jamais definiria dizendo, Ah, mas é uma garoa!, pois garoa só existe em São Paulo.

Assim, concluo que não vou discutir com ela, afinal o paulistano é sua língua materna e ela está aprendendo o uso da palavra na prática, no meio de um contexto. Já eu aprendi lendo os poetas, ouvindo música, mas sem entender a relação direta com o fenômeno. Convenço-me de que a mudança de sentido é possível, para que desperdiçar uma palavra tão bonita como garoa? Se agora uma nuvem de fumaça (ou de areia) pode deixar a cidade escura às três da tarde, e se existe essa coisa que se espalha de forma invisível e transforma a vida de um planeta inteiro em poucos meses – então tudo é possível, garoa pode ter virado uma chuva de canivetes.

*

Resolvi contar essa história pois estava lendo o recém-lançado Vida desinteressante, livro que reúne as crônicas de Victor Heringer publicadas na revista Pessoa e, quando ouvi minha filha falando, me senti dentro de uma crônica dele. Não só porque muitos dos textos tratam dos contrastes entre São Paulo e Rio (carioca que ele foi morando em São Paulo, estava sempre comparando as duas cidades); e não só porque me vi em meio a uma questão linguístico-filológica despertada pelo significante (também outro assunto que suas crônicas tocam); também não foi apenas pela ironia da situação: minha filha de 3 anos podia ter razão por ser dona de um saber prático que eu não tenho em sua cidade natal (o livro está coberto de situações irônicas, vistas com uma ironia muito heringueriana!). Talvez um pouco por tudo isso, é claro, mas sobretudo pela lição do mínimo, do cotidiano, da forma de olhar para as coisas mais desimportantes e perceber nelas certo lirismo, certo deslocamento – percepção que, para acontecer, precisa, muitas vezes, estar no olhar de quem vê e filtra as coisas (é o que seu livro parece dizer transformando a nossa própria maneira de olhar para os nossos dias).

Cheio de ternura, ironia, melancolia, inteligência e um tom desconcertantemente premonitório, o livro de Victor Heringer tem uma capacidade de fazer perguntas e revirar as coisas, o mundo e os sentidos – de olhar para o que for (pichações da cidade, um livro de adivinhas de uma aula de inglês, uma faxineira sentada no banheiro de um bar) e instaurar novos sentidos, como se tudo pudesse se converter num poema. Numa das crônicas, ele define: “Poesia é tudo aquilo que funda mundos no mundo.” Seus textos são poemas que fundam outros mundos, e outras formas de estar no mundo.

Nesse momento em que estamos indo para a cucuia (como em outra crônica ele diz, “mundo, nosso mundo: próxima estação: cucuia”), só nos resta vestir esses óculos do alumbramento para poder olhar para uma chuvarada, mas enxergar a nostálgica São Paulo da garoa. Ou olhar para uma torre e enxergar estrelas, como na crônica que dá título ao livro:

“Tive meu primeiro alumbramento em São Paulo um dia desses: confundi três torres piscando com estrelas. Torres de celular”.

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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