Guimarães Rosa e o Grande sertão

18/11/2020

 

Cinquenta e três anos após a morte de Guimarães Rosa, a presença do escritor segue viva, atraindo renovadas gerações de leitores e pesquisadores. Esta presença pode ser atestada em um breve levantamento dos estudos acadêmicos sobre JGR entre 2014 e 2018, no Banco de Dados Bibliográfico dedicado ao autor, na Universidade de São Paulo (USP). Dos textos literários mais investigados pela crítica, Grande sertão: veredas é visivelmente o que tem maior número de estudos, quase dez vezes mais do que o segundo colocado, o conto “A terceira margem do rio”. O volume de contos Sagarana (1946) e Tutameia (1967), aparecem na sequência. Quatro outras narrativas também merecem destaque: “Campo geral”, “Meu tio o Iauaretê”, “O espelho” e “A hora e a vez de Augusto Matraga”.

Ao olhar a produção total de teses e dissertações sobre Guimarães Rosa, verifica-se que o número delas não passava de vinte por ano até os anos 2000. Entre 2014 e 2018, no entanto, a quantidade mais que duplicou. Uma provável explicação para este aumento é o crescimento do número de cursos de Letras no país (via Reuni). Entre 2019 e 2020 foram defendidas 41 novas teses sobre a obra de Rosa. Quanto a artigos publicados em revistas acadêmicas, o quadro é semelhante. Em 1998, o número não passava de cinquenta textos; dez anos depois, no centenário de nascimento de Rosa (2008), o número ultrapassava já os 150 artigos, e desde 2014 no mínimo cem artigos são publicados por ano.

No entanto, ainda há muitos aspectos de Grande sertão: veredas a serem estudados. Destaco aqui três ou quatro contribuições para aprofundar a reflexão sobre Guimarães Rosa e seu romance.

Primeiro, sobre o autor. É de estranhar como tal interesse por sua obra não tenha implicado na tradução, no Brasil, de uma entrevista concedida a Luis Harss e Barbara Dohmann, em 1965, escrita no formato de perfil literário e publicada originalmente em Los Nuestros (1966). No livro, além de Rosa, o casal Harss e Dohmann conversou no mesmo ano com Alejo Carpentier, Miguel Ángel Astúrias, Jorge Luis Borges, Juan Carlos Onetti, Juan Rulfo, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Em 1965, quando começou a fase das entrevistas, poucos desses escritores tinham repercussão internacional. García Márquez não tinha publicado Cem anos de solidão (1967) e Vargas Llosa tinha apenas um livro lançado. Note-se que Rosa foi o único brasileiro entrevistado.

Los Nuestros é muitas vezes apontado como o livro responsável pelo boom latino-americano, já que, poucos dias depois de lançado, já havia se tornado um fenômeno de vendas, sendo adotado a partir de então nos currículos das universidades de todo o mundo. “Boom latino-americano” é o nome dado ao fenômeno literário ocorrido no final dos anos 1960 e que durou toda a década de 1970. A participação de Rosa neste fenômeno talvez merecesse revisões. Não por acaso ele chegou a ocupar a vice-presidência da primeira “Sociedade de Escritores Latino-americanos”, em 1965, e pouco se sabe sobre sua participação no segundo encontro de escritores, na Cidade do México, entre 15 e 23 de março de 1967.

Outra consideração que gostaria de fazer é no campo da metafísica. Apesar do pioneiro estudo de Francis Utéza com seu soberbo Metafísica do Grande sertão  (1994), em que concentrou 460 páginas ao minucioso estudo do tema em GSV, em nenhuma de suas páginas aparecem os termos relacionados às divindades da cultura afro-ameríndias e afro-brasileiras. É como se Guimarães Rosa nunca tivesse se interessado por elas. Ora, termos com “diabo na rua”, “encruzilhada”, “pacto”, “redemunho” em GSV, ou "giro", "gira", "festa", "batuque", "charuto", "possessão", "cavalo", "boiadeiros", "guarda-marinheira", em “O recado do morro”, não são ocorrências aleatórias. Rosa nunca escondeu de ninguém seu processo “mediúnico” de criação e, sobre os sete meses frenéticos em que trabalhou na escritura de GSV, chegou a dizer: “Os caboclos baixaram em mim”.

Vale mencionar também a ausência de debates críticos acerca de temas da abjeção. Demonologia, racismo, homossexualidade, entre outros, não costumam aparecer entre os assuntos abordados. Sabemos que Grande sertão: veredas toca visceralmente alguns anátemas morais da tradicional e conservadora sociedade brasileira. Podemos acrescentar a feitiçaria, o espiritismo, os abusos sexuais, a prostituição, a homofobia, a misoginia e a transgeneridade.

Por fim, é pouco conhecido o apreço que Rosa tinha pelas artes plásticas. A grande quantidade de desenhos que fazia à mão em seus cadernos merece ser pensada em futuros projetos editoriais. Além disso, sua relação com Cícero Dias, Poty Lazzarotto, Tomás Santo Rosa, Luís Jardim, Alexander Calder, entre outros, as muitas menções às exposições nos cadernos (pintores flamencos do século 17; Cent Portraits des Femmes etc), as listas ou estudos sobre cores, pinturas, pintores, paisagens, mapas ilustrados e símbolos esotéricos, valem pesquisas.

O símbolo do infinito, por exemplo, é recorrente e aparece assinalado em vários de seus cadernos geralmente de duas formas: µ e ∞ . O tema do infinito se adequava com perfeição à complexidade de sua personalidade introspectiva, meditativa, de poeta místico e cientista, numa formação que unia medicina, estudo de línguas, diplomacia, teologia, artes e humanidades.

 

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Gustavo de Castro é poeta, professor da UnB e pesquisador da vida e da obra de Guimarães Rosa.

 

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