Heartstopper e a subversiva originalidade dos clichês

13/05/2022

Por Samir Machado de Machado

 

Conheci Heartstopper, a série em quadrinhos da escritora e ilustradora inglesa Alice Oseman, quando esta ainda era uma webcomic prestes a ganhar sua publicação em papel. Fui atraído pelo seu traço delicado, que parecia estabelecer uma ponte entre a cultura japonesa de mangás com histórias românticas ambientadas em colégios internos, somada a certo estilo de ilustração infantil muito inglês (num primeiro momento, o traço de Oseman me remeteu ao de Quentin Blake, ilustrador dos livros de Roald Dahl).

Mas o que me fisgou, me fazendo acompanhar as idas e vindas do namoro entre os adolescentes Charlie Spring e Nick Nelson, foi o modo como Oseman conduz seus enredos: os primeiros adjetivos que me vêm à mente são “caloroso”, “saudável” e, acima de tudo, “positivo”. Mas não é a positividade traiçoeira e vazia dos discursos de autoajuda, e sim uma espécie de melancolia otimista e sincera, que reconhece anseios adolescentes, os respeita e oferece caminhos otimistas. Claro, há homofobia e preconceito no mundo de Heartsopper, mas também há pais compreensíveis, amigos fieis, e o mais importante, a promessa de um final feliz. Enfim, tudo o que uma “dramédia” romântica pode oferecer.

É clichê? Sim. Mas, ao mesmo tempo, não.

De modo geral, quando se diz que algo é “clichê”, a expressão é sempre pejorativa. “Clichê” é sinônimo de falta de criatividade por parte dos autores, ou de previsibilidade de uma história. O que é algo injusto: os clichês são apenas ferramentas narrativas, úteis para criar certas expectativas e jogar com elas, conforme a habilidade do autor em manipular seu público.

Mas quando um clichê deixa de ser clichê, para se tornar original? Quando passa a ser utilizado onde nunca foi antes. Uma história de amor adolescente com final feliz pode ser um grande clichê quando se trata de um casal heterossexual, mas até bem pouco tempo atrás, não era essa a realidade de histórias protagonizadas por LGBTQIAP+.

De fato, o clichê de histórias de amor gay é outro: é o final infeliz, dos amantes separados pelas normas sociais e pela impossibilidade de autoaceitação, ou então o fim trágico, mortos por AIDS, pela violência homofóbica ou pelo mero acaso. Até bem pouco tempo atrás, a aceitação popular de uma narrativa LGBTQIAP+, fosse em um livro, filme ou série, vinha condicionada, necessariamente, à impossibilidade de felicidade. Um clichê tão forte e tão constante que, em inglês, foi batizado de bury your gays (“enterre seus gays”). Brokeback Moutain, O quarto de Giovanni, Filadélfia, Meninos não choram... a lista é longa e recente, tanto em filmes, quanto em livros e programas de televisão.

Tragédia e infelicidade eram vistas como a única solução “realista” para um enredo de amor gay, uma consequência “natural” para esse tipo de história. Mesmo que isso não fosse nem mesmo historicamente acurado. É importante lembrar que, ao longo do tempo, a cultura (e a própria existência) homossexual foi sendo apagada ou heteronormatizada, de tal modo que o único registro a sobrar acabe sendo não os de casais do mesmo sexo que viveram juntos por anos (mas eram “apenas bons amigos” ou “companheiros de quarto”), e sim os registros dos tribunais, as atas de inquisição, os escândalos nos jornais daqueles que cometeram o erro de chamar atenção demais para si, criando a falsa ilusão de uma identidade necessariamente condenada à tragédia.

Como disse Michel Foucault: “as pessoas podem tolerar ver dois homossexuais saindo juntos, mas se no dia seguinte elas verem eles sorrindo, de mãos dadas e se abraçando, isso é o que não pode ser perdoado. O que é intolerável não é a busca pelo prazer, é acordar feliz no dia seguinte”.

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O exemplo mais tradicional do mito do “gay trágico” talvez seja Oscar Wilde. Quando Wilde foi condenado à prisão no final do século XIX, uma sombra foi lançada sobre toda a literatura LGBTQIAP+ do século seguinte. Essa sombra condicionou a aceitação popular de narrativas protagonizadas por personagens queer somente quando esses personagens recebessem o devido fim trágico — a punição por terem confrontado a norma social.

O mito do “gay trágico” seria forte o suficiente para que o romancista inglês E. M. Forster, ele próprio homossexual, não se arriscasse a lançar em vida seu romance Maurice, escrito ao longo das duas primeiras décadas do século XX. No livro, Forster escrevia uma história de amor entre rapazes ingleses num colégio interno, com um ousado (e revolucionário, caso tivesse sido publicado na época) final feliz. Foi inspirado na relação entre o poeta e ativista gay Edward Carpenter e seu companheiro George Meryll, que viveram juntos como casal em plena Inglaterra Eduardiana. Mas Forster determinou que o livro só fosse publicado após sua morte, o que ocorreu em 1971. Curiosamente, quando o livro foi adaptado para um filme com Hugh Grant em 1986, ainda assim o espólio de Forster temeu que a adaptação prejudicasse a reputação póstuma do autor.

Num pós-escrito ao livro, Forster observa que, durante seu tempo de vida, houve uma mudança na atitude do público quanto a esse aspecto (a homossexualidade): a conversão da “ignorância e terror” em “familiaridade e desprezo”: “Eu supusera que esse conhecimento trouxesse a compreensão. Não havíamos percebido que aquilo que o público realmente abomina na homossexualidade não é a coisa em si, mas o fato de ser obrigado a pensar nela. Se ela pudesse ser inserida em nosso meio de forma despercebida ou então fosse legalizada da noite para o dia num decreto em letras miúdas, haveria poucos protestos”.

Forster não viveu para ver a epidemia da aids nos anos 1980 reverter a familiaridade e o desprezo de volta aos tempos de ignorância e terror. Como diz o pesquisador britânico Gregory Woods, em seu A History of Gay Literature, “de um modo chocante, a aids nos fez retornar à posição no qual heteros hostis mais ficam felizes em nos confinar, nos fez retornar — especialmente as gerações mais velhas — para um lugar onde nos sentíamos, senão felizes, em casa”. Esse lugar, no caso, era de volta ao armário.

Em Heartstopper, quando Charlie Spring sofre homofobia por parte de colegas, diz a quem tenta defendê-lo: não precisa se incomodar por mim, já estou acostumado. Ao que lhe respondem que ninguém deveria se acostumar com esse tipo de coisa. E de fato, não deveríamos. Ao menos, não mais. Por isso, não vejo onde há clichês em Heartstopper: nós é que nos acostumamos com o que não deveríamos ter nos acostumado.

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Para quem é da minha geração, uma reação constante após assistir (ou ler) Heartstopper tem sido dizer: “queria que houvesse algo assim na minha época”. Tanto os quadrinhos quanto a série são o tipo de narrativa saudável que eu gostaria de ter tido acesso aos treze anos, e nisso há algo de revolucionário na popularidade da série.

Para aqueles que, como eu, foram crianças e adolescentes queer durante os anos 1980 e 1990 — quando a única representação que se tinha de nós na mídia limitava-se a ver um Cazuza cadavérico na capa da revista Veja como “rosto da aids”, a fake news (publicada na mesma revista) de que Cassia Eller havia morrido de overdose, onde o cinema de ação absorvia toda a estética da cultura gay dos anos 1980 mas relegava os personagens LGBTQIAP+ ao papel de vilões histéricos, psicóticos ou serial-killers, enquanto que na televisão éramos as “piadas de bichinhas” dos humorísticos ou as lésbicas que explodiam junto com o shopping center — a simplicidade de se ver protagonista de uma narrativa de comédia romântica, com todos os clichês característicos de uma, é de um ineditismo tão revolucionário quanto agridoce.

Agridoce, pois há sempre o retrogosto amargo de não poder ter lido algo assim na devida idade. Se o meu eu de treze anos tivesse narrativas assim na adolescência, alguns traumas e problemas de autoaceitação teriam sido evitados. Eu provavelmente estaria desenhando os personagens nos meus cadernos do colégio, estaria obcecado com a trilha sonora do seriado, comprando todas as revistas que trouxessem os atores na capa.

Pode ser um pouco tarde para a minha geração, mas há também o alívio em saber que os mais jovens (e as gerações que virão) agora possuem um modelo saudável onde projetar sua imaginação. Heartstopper é uma narrativa repleta de doçura que atinge não apenas jovens queer, mas também os adultos em suas vidas, aos quais talvez faltassem referências de como lidar com essas típicas mudanças da adolescência. Arrisco dizer que também para jovens que se identificam como heterossexuais, ao fornecer não apenas a possibilidade de uma projeção do eu no outro, mas também modelos de convivência que parecem superar já os estereótipos da high school norte-americana, com seus atores adultos de trinta anos interpretando adolescentes, em enredos hipersexualizados para efeitos sensacionalistas.

Em Heartstopper, sabemos que Charlie foi tirado do armário contra sua vontade e sofreu com a homofobia no colégio, mas isso foi no ano anterior ao início do enredo. Sabemos que Elle, uma menina trans, já passou pelos piores momentos de transfobia e acaba de ser transferida para um colégio só de meninas. Apesar dos conflitos que movem a narrativa, o pior já passou antes mesmo da história começar, e o que se oferece aos personagens (e ao leitor) é o que vem depois: a possibilidade de se imaginarem num final feliz que até pouco tempo atrás seria considerado inverossímil. Antes de tudo, Heartstopper é uma história de cura emocional — através da amizade e do amor, o que inclui também o amor-próprio.

 


Samir Machado de Machado nasceu em Porto Alegre, em 1981. É escritor, tradutor e doutorando em escrita criativa pela PUC-RS. É autor de Quatro soldados (2013) e Homens elegantes (2016), além do infanto-juvenil Piratas à vista! (2019) e co-autor de Corpos secos (2020), pelo qual recebeu o prêmio Jabuti de melhor livro de entretenimento. Seu romance Tupinlândia (2018), recebeu o Prêmio Minuano de Literatura e foi publicado na França pela Editions Metailié, tendo ganho o prêmio Jabuti de melhor romance brasileiro publicado no exterior.

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