Hilda Hilst: a poesia nos limites do homem

26/04/2017

Por Julia de Souza

Desenho de Hilda Hilst.

“Deus eu não conheço. Não conheço esse senhor.” — Hilda Hilst, em entrevista concedida a Bruno Zeni (1998, Revista Cult)

Hilda Hilst afirmou diversas vezes que sua obra se dedicou à procura de um contato com Deus, com o inominado, e esse empenho se manifesta insistentemente em sua poesia. A busca por tal revelação sempre esteve, porém, acompanhada de uma incerteza com relação à possibilidade de transcendência. Esse Deus, irremediavelmente alheio e mudo, por vezes carrasco, animalesco ou confundido com um amante, inspira sobretudo desconfiança, pois que nega qualquer possibilidade de interlocução.

(…)
A quem te procura, calas.
A mim que pergunto, escondes
Tua casa e tuas estradas.
Depois trituras. Corpo de amantes
E amadas.
E buscas
A quem nunca te procura.

(em Poemas malditos, gozosos e devotos)

No imaginário de Hilda Hilst, é apenas no âmbito da escrita e do desejo que Deus vive: sua existência depende dos homens. E, assim, é nas interrogações sobre os limites e o destino do Homem que a obra de Hilda alcança sua força. Em um dos poemas inéditos presentes em Da poesia, lançado agora pela Companhia das Letras, a jovem Hilda, aos dezenove anos, já contemplava os temas da morte e do suicídio — questões que retornariam com frequência em toda a sua produção escrita, permeada pelas interrogações e impasses característicos das situações-limite: as paixões, a loucura, a violência, a embriaguez, o esgotamento da linguagem, a perda de si. Essa predileção por configurações excessivas ou radicais indicam uma escrita que oscila entre a luminosidade e o obscuro, entre o alto e o baixo, o sublime e o abjeto. Em Da morte. Odes mínimas (1980), a autora interpela diretamente a Morte, limite último. E é sob a forma de cavalo que esta é imaginada:

Pertencente te carrego:
Dorso mutante, morte.
Há milênios te sei
E nunca te conheço.
Nós, consortes do tempo
Amada morte
Beijo-te o flanco
Os dentes
Caminho candente a tua sorte
A minha. Te cavalgo. Tento.

(Em: Da morte. Odes mínimas)

A constante presença de imagens de animalidade na obra de Hilst também merece atenção. São muitos os bichos que atravessam seus textos: porcos, mulas, tigres, leopardos, cães e cadelas, escorpiões, pássaros etc. A afinidade de Hilda com os animais, tanto em sua vida pessoal — a autora chegou a abrigar dezenas de cachorros em sua Casa do Sol — como em sua escrita, sugere uma vontade de aproximação com aqueles que escapam ao humano. Em seus poemas, ora os bichos são tidos como estrangeiros, ora se irmanam aos homens em seu mistério, estabelecendo-se entre eles uma relação de transversalidade.

O “olho do bicho é uma pergunta sem resposta”, diz a Obscena senhora D. Assim, na obra de Hilda Hilst, esse território comum ao humano e ao extra-humano surge como possibilidade de configuração de afetos e enigmas.

Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A ideia, a garra, de mim mesma não sei
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde.
Leopardos e abstrações. Que vem a ser?

(Em: Júbilo, memória, noviciado da paixão)

A imagem dos leopardos se associa à ideia da abstração — aquilo que, como esse Deus nunca atingido, resiste à configuração.

Se, em seus versos, as tentativas de atinar com uma ideia de Deus constantemente deságuam num interdito, Hilda não deixou de cultivar um senso quase idealizado da poesia e do fazer poético, associando-o muitas vezes a imagens de aves. Embora não alcance a certeza do divino, a poesia seria capaz de tocar em seu voo as bordas e intensidades da existência.

Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.

(em: Amavisse)

Presente em Amavisse (1989), obra que, à altura de seu lançamento, foi anunciada pela autora como seu livro de despedida, o poema encerra em um só termo o pássaro e a poesia: esta, fazer propriamente humano, dotada de asas, seria aquilo que é capaz de realizar ultrapassagens, ir além do “Amanhã”, “Luz”, do “Impossível”. Numa revisão dos temas que lhe foram caros, a poeta sublinha aquilo que mais pensou: a própria poesia, as situações-limite e “A convulsão do Homem”. Fica evidente aqui que a questão dos confins da humanidade era central para Hilst, tanto na associação do homem com a animalidade — por exemplo, na imagem afirmativa do pássaro que guia o poeta numa viagem de confronto com categorias de fronteira —, como na abordagem dos motivos que levam a uma desestabilização daquilo que se entende por humano.

Na série “Poemas aos homens do nosso tempo”, do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), a autora exalta o poetas como aqueles que “repensam a tarefa de pensar o mundo”. Hilda arremete com ferocidade contra a violência e os líderes políticos (“homens-hiena”), cuja ganância se contrapõe à capacidade de empatia atribuída aos poetas. Seria possível concluir que Hilda Hilst se identificava com a figura do mártir: o animal-vítima, o poeta que encarna o sofrimento alheio e incorpora de forma sacrificial as dores do mundo. Mas talvez seja mais preciso afirmar que sua poesia, que arriscou um corpo a corpo com a Morte, encerrava um anseio de duração — de encontro fértil com o outro, de resistência à vulgaridade e de manutenção do desejo e do enigma. Disse ela: “Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta/ O homem está vivo”. 

* * * * *

Julia de Souza (São Paulo, 1986) é poeta e mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde desenvolveu pesquisa sobre uma narrativa de Hilda Hilst. É autora de Covil (7Letras, 2013) e Gigante vermelha (Megamíni - 7Letras, 2017), e integra a coletênea É agora como nunca (Companhia das Letras, 2017).

 

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