História casual do papel (parte 2)

19/05/2021

Manuscrito de Li Bai. Museu do Palácio, Pequim

 

Abro um e outro livro de poesia chinesa clássica — são diferentes traduções para o português. Mantenho-me na dinastia Tang, nos poemas de Li Bai (também chamado de Li Po) e Du Fu. Em Li Bai, que recebeu o epíteto de “o imortal exilado na terra”, leio: “a ponta fina dos bambus perfura a névoa azulada/a cascata se agarra ao pico esmeralda”.[i] No poema, o visitante aguarda o retorno de um monge taoista. Adiante, em outro poema, o velho amigo parte em um barco; a quem fica, resta apenas “o grande Rio a correr para os confins do céu”. Passo as páginas, troco de tradução. Vou sublinhando versos esparsos: “meu relho no ar roça as nuvens”, pensa o cavaleiro diante da moça no caminho. “Se estender a mão, posso tocar as estrelas”, diz o poeta no templo da montanha. Em Du Fu, amigo de Li Bai e seu admirador, anoto: “em fila, garças brancas sobem para o azul/Da janela abraço cristas nevadas [...]”— é um poema-paisagem. Em outro, há “prantos se alçando até as nuvens” — é um poema de guerra.

Li Bai e Du Fu, como se sabe, são dois dos maiores poetas chineses. Viveram em um império cosmopolita, generoso com os poetas e a arte, com a música, a pintura, a caligrafia. Tanto em Li Bai, um taoista que dedicou quartetos ao vinho e à lua, quanto em Du Fu, um confucionista atormentado pela guerra (e pelo fracasso nos exames imperiais), vejo repetir-se essa mesma imagem, vertical e ascendente, de movimento em direção ao céu, e o desejo de tocá-lo. Os poemas são concretos, espaciais. Há vinho, vento, há montanhas, rios, guerra. E há sempre a força que atrai o olhar para cima — uma precipitação para as alturas. Picos, torres, estrelas, pinheiros. Barcos rompendo a linha do horizonte. “É preciso alcançar o extremo o cume”, diz um verso famoso de Du Fu, dirigido ao Monte Tai. O corpo se eleva em comunhão com nuvens e pássaros, e ao fim é como se transcendesse em estado de montanha. Tornar-se a grande montanha: “de um só olhar mil picos se apequenem”. [ii]  

Há nesses poemas, porém, um movimento reverso. É também vertical, é também recorrente, mas vai do alto a baixo, e assim se opõe ao anterior e o equilibra. É um golpe que converge para a terra, às vezes sutil — um olhar caído, a luz poente, uma persiana que desce. “Águas em voo que se jogam de três mil pés”, escreve Li Bai, em visita ao monte Lu, e pergunta: “não é a Via Látea caindo do alto do céu?”. Um dos poemas mais divulgados de Li Bai, evocando o silêncio e a noite, joga com a posição da cabeça, levantada ou baixa, para opor o céu à lembrança de casa, o instante ao passado, o exílio à memória, e a partir daí liberta uma cadeia de dualidades, de acordo com a direção do olhar. Haroldo de Campos nos dá a seguinte tradução: “cabeça alta/ olho na lua prata//cabeça caída/mente na terra antiga”. A possibilidade de associações parece infinita. Nessa vertigem, vejo um desvio para a escrita: erguer a cabeça, imaginar (partir); abaixá-la, escrever (ficar). A gravidade, aqui, no eixo entre o céu e o chão, é exercida pelo papel, o papel em branco; o gesto decisivo é o do pincel — ereto contra a superfície da folha. “Vou escrever, abaixo meu pincel sobre o papel, meu poema abalará os cinco montes sagrados”[iii], diz Li Bai, invocando seus ancestrais e a figura do grou amarelo — símbolo da imortalidade. Se há uma forma de transcendência pelo céu, também deve haver pela escrita. É o que parece sugerir Du Fu, em um poema melancólico, que indaga sobre o reconhecimento do artista, sobre a permanência do seu nome. “Sou uma gaivota da areia que luta solitária entre o céu e a terra”, escreve. Céu-terra. Eis o espaço da criação, o círculo do poeta.

Desconheço a língua chinesa, seu funcionamento, seu maravilhoso mundo pictográfico. No entanto, posso pressentir a presença desse traço na poesia que leio, essa espécie de ideograma-fantasma que perambula à sombra dos versos. “Subir ao azul, pegar a lua com as mãos!/Com a espada, cortar a água: ela correrá mais bela.” A imagem imediata, no verso de Li Bai, é a da mão que maneja a espada, mas sem dúvida ecoa nela outra manobra, a do calígrafo que levanta o pincel. Tanto o punho do espadachim quanto o do calígrafo devem ser firmes; espada e pincel trabalham como extensão do braço. É pois no gesto do calígrafo, no movimento concreto de suas pinceladas, que reverbera a imagem poética da criação. Cem anos depois de Li Bai, a poeta e calígrafa Yu Xuanji descreverá, com concisão exemplar, a dissolução das nuvens em tinta: “Nuvens nos picos, a primavera no olhar/ Prata entre os dedos, a clara caligrafia”. O papel se torna o espelho do firmamento, seu avesso. Ou, como sugere Li He, outro poeta da era clássica chinesa, citado por François Cheng (e roubado por mim): “o pincel arremata a Criação, o mérito não é todo do Céu”.

 

*

 

Em um poema, a sintaxe do silêncio é tão importante quanto a das palavras. Sem um domínio suficiente do silêncio, torna-se difícil escrever poemas. Como uma espécie de matéria escura, certas figuras ou elementos do texto só podem ser percebidos por seus reflexos ou efeitos, e não diretamente por sua presença. São o cosmo invisível do poema. “Ao toque do pincel de bambu/o vento e a chuva galopam/assim que terminas o poema/deuses e demônios choram”. Traduzidos por Haroldo de Campos, esses versos de Du Fu foram escritos em homenagem a Li Bai. Neles se reverencia o talento do poeta, a força do seu ofício. Está lá, explícita, a imagem do pincel, um dos tesouros do calígrafo. Está lá o poema concluído, o vento. Mas está lá também algo que as palavras ocultam, e que tem sua medida, sua radiação violenta e fatal. Está lá, preciosa, a tinta que sai do pincel; está lá ainda, encarnando a matéria do poema, o papel. É o papel, com sua maciez e porosidade, que subjaz no toque do pincel, no prenúncio de seu último toque. É da visão fulgurante do poema sobre o papel que vem a reação dos deuses e dos demônios. Não mencionado, o papel é puro presságio. O papel é a véspera do traço – fragilidade e promessa.

Uma descoberta ou invenção muda não apenas o objeto que se tornará obsoleto; muda todas as relações estabelecidas em torno dele. No século de Li Bai e Du Fu, a China começava a imprimir usando matrizes de madeira. Fazia livros sanfonados, emitia moeda em papel. Mantras e textos sagrados podiam ser distribuídos em larga escala. Em Samarcanda, para além da borda ocidental do império, trabalhadores chineses são aprisionados; transmitem aos árabes a técnica de fabricar o papel. O papel é um pássaro silencioso que, em meio às batalhas, pousa em Bagdá antes de chegar à Europa. “Fogueiras queimam longo tempo aos cumes/ cartas de casa valem uma fortuna”[iv], escreve Du Fu. Tanto ele quanto Li Bai testemunham a agitação das fronteiras. Yu Xuanji apresentará depois outra perspectiva: “Mulheres: a espera junto ao tear/Aos homens, a marcha além da Muralha//As aves no céu; aos peixes, o rio/Ficam as cartas a meio caminho”[v]. Se os poemas tivessem um inconsciente, se houvesse um meio de vasculhá-lo, o papel estaria ali, fresco como casca de árvore, sob a superfície dos versos, nas cartas que não chegam, nos incêndios, contrastando com a seda, tocado pelo vento. No inconsciente desses poemas, a história do papel se cruza com a da literatura.

 

Fragmento do Sutra Diamante (868 dC)

 

Detenho-me um pouco no vento, nos múltiplos ventos que aparecem nesses poemas. Vento norte, vento de primavera, de outono. Vento que agita a grama, os bambus, as ervas. Ventos violentos, vento nas ameias, na palha. Vento que é galope e cavalo, que escolta os gansos selvagens, que em tudo penetra. Vento da tempestade, vento que chega ao papel. Tal como o vinho exige sua taça, ou a faca cria seus cortes, tal como o vidro muda a ideia da luz, o papel, ele próprio mistura de fibra e vento, altera o sentido do vento, a memória que temos dele, o modo como o sonhamos. Institui talvez uma nova categoria de vento, um estalo seco e suave que encontrará sua perfeição nos livros. “Os caracteres que traço não precisam senão/ do rumor dos bambus: e são eternos! eternos!”, escreve Du Fu, traduzido por Cecília Meireles. Apanhado pelo vento, o papel é um rumor auditivo e tátil; farfalha dentro do poema.

 

 

[i] Não havendo menção em contrário, as traduções dos poemas que cito são as de Sérgio Capparelli e Sun Yuki.

[ii] Aqui a tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao (inclusive a do verso anterior).

[iii] Tradução de Maria do Rosário.

[iv] Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao.

[v] Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao.

 

***

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

Marcílio França Castro

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

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