Irmãos de letras e travessuras

20/05/2020

Por Ivan Sant’Anna

Texto publicado originalmente pela Inversa Publicações em 11 de maio de 2020.

 

Hoje não vou falar de economia, crises nacionais ou internacionais, política ou qualquer outro assunto que influencie a Bolsa e os demais mercados. Neste texto pretendo tratar de um assunto pessoal. Refiro-me à morte de meu irmão, Sérgio Sant’Anna, vítima da covid-19, na madrugada de ontem.

Em minha opinião, e na de boa parte dos críticos, Sérgio era o melhor escritor brasileiro. Como os bons escritores não morrem de verdade — simplesmente vão embora deixando atrás de si os seus textos —, quem quiser conhecê-lo, e até mesmo ser íntimo dele, basta adquirir um de seus livros (três deles premiados com o Jabuti). Isso não vale só para você, amiga ou amigo, mas também para seu filho pequeno, daqui a vinte anos, ou mesmo para o seu neto que ainda não nasceu.

Pensando bem, acho melhor reviver o Sérgio imediatamente, reproduzindo uma passagem de um livro dele que fala da época em que, ainda meninos, logo depois da Segunda Guerra Mundial, morávamos em Londres com a família. Logo a seguir, transcrevo trecho de um livro de minha autoria, no qual conto a mesma história. As duas narrativas retratam um episódio ocorrido no metrô londrino.

Na página 8 de O conto zero e outras histórias (Companhia das Letras, 2016), escrevendo como se fosse uma terceira pessoa falando sobre a gente, Sérgio disse:

 

Vocês moravam e pegavam o metrô em Kensington (Olympia), então deveriam descer em Earl’s Court, a fim de pegar de novo o tube até Leicester Square e aí para Hampstead, onde se localizava o colégio, mas em vez de fazer isso, nos dias de gazeta, percorriam os subterrâneos da cidade inteira, saindo até do condado, quando o trem já subira à superfície, e depois retornavam a Earl’s Court, tão perto de Olympia que dava até para ir a pé.

 

Na página 13 de meu livro Em nome de Sua Majestade (Objetiva, 2006) escrevi:

 

Passamos cinco dias, de segunda a sexta, do amanhecer ao anoitecer, no metrô. Naturalmente que não ficávamos parados na estação de South Kensington. Engravatados no uniforme do St. Anthony’s, rodávamos a cidade inteira. Adquirimos um tremendo know-how das linhas, das conexões, que antes já conhecíamos bem. Aprendemos a viajar sem pagar. Ou melhor, pagando a tarifa mínima, de South Kensington para Gloucester Road, que era a estação mais próxima. O dinheiro que sobrava (recebíamos de meu pai para ir até Hampstead e voltar), jogávamos em um caça-níqueis da estação de Baker Street, cujos prêmios eram pequenos brindes.

 

Pois é, meus queridos amigos, um dos trapezistas da trupe Los Sant’Anna se foi ontem. Suas mãos não se encaixaram no ar nos punhos do aparador. O circo emudeceu. Foi possível ouvir o farfalhar da lona ao vento.

Mas caso um dos seus netos ou bisnetos, se valendo da inexistência do plano temporal na literatura, quiser encontrá-lo lá adiante, quem sabe no século XXII, vai vê-lo, como sempre, encabulado, falando sobre a vida de dois meninos no Londres pós-guerra.

Pena que não teve tempo de escrever sobre a gripezinha que o levou.

 

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