Jabuti 2016: "O frango ensopado da minha mãe"

23/11/2016

Foto: Raquel Cunha/Folhapress

Mineira que mora em São Paulo, Nina Horta é cronista da Folha de S. Paulo desde 1987, onde escreve sobre suas experiências gastronômicas e sobre os conhecimentos que acumulou em anos à frente do fogão. Em 1995, a Companhia das Letras publicou uma primeira reunião de seus textos, Não é sopa, que em pouco tempo se tornou um clássico das narrativas gastronômicas brasileiras. Vinte anos depois, uma segunda leva de crônicas é publicada em livro: O frango ensopado da minha mãe, premiado com o Jabuti de Gastronomia. 

Os textos de Nina pretendem falar sobre comida, mas falam também de vida. De uma vida simples, rica em experiências e repetições que levam à sabedoria - do jeito que ela prefere a culinária: sem esnobaria e afetação. Por isso seus textos não se destacam só pela forma com que fala do mundo gastronômico, mas também a colocam entre as melhores cronistas do país. 

Família, amigos, cozinheiros, livros, filmes, lugares, nomes de pratos, modismos gastronômicos, dietas e cuidados alimentares contemporâneos - tudo serve para mobilizar a escrita afetuosa em tom de troca de receitas, a glosa sagaz de quem conhece muita coisa e as escolhas de quem chegou à plena liberdade.

Na resenha de Luiza Fecarotta na Folha de S. Paulo, ela escreve que "Nina Horta, que outrora nos ensinou que a 'comida de alma é aquela que consola, que escorre garganta abaixo quase sem precisar ser mastigada, na hora de dor, de depressão, de tristeza pequena', agora nos empresta mais uma dose de sabedoria e de bonitezas e de referências", destacando a frase: "Ler receita é o de menos. Se você ler um livro de arte, na hora de preparar um prato, sem querer, lá no fundo, tem um Van Gogh, um Matisse dando uma mãozinha".

Para você conhecer mais sobre O frango ensopado da minha mãe, leia uma das crônicas do livro. 

* * *

Lembranças

Todo mundo quer reminiscências. Parece até que ninguém está mais interessado em comer, só em lembrar. De jaca, de tamarindo, de mangarito, de empadinha com recheio úmido. De comida de alma, de comida de mãe. Já lembrei tudo o que havia para lembrar, acabou-se o que era doce.

O resto, se é que existe, está guardado no esquecimento com a menina loura de trança grossa, o menino de topete de gomalina, mortos tantas vezes, a cada dia, a cada hora. É deles que temos saudade, das vítimas do tempo, e não há vantagem em querer ressuscitá-los à força em imagens distorcidas.

A memória só acode subitamente, quase brutal, quando, ao se regar o jardim, por exemplo, pisa-se no tomateiro. O cheiro traz de volta a menina de tranças, frágil, nua, quase uma polpa trêmula. E, na página seca de um jornal, não há possibilidade de representar a força onírica e lírica de um tomateiro machucado.

Temos uma vocação para a saudade da época em que as coisas se manifestavam pela primeira vez, a alcachofra, uma caixa de segredos, quando o hábito ainda não escondera a intrigante caminhada roxa e verde até o centro. Sensações elementares que se repetiam, confortantes, simples e caseiras, os barulhos do café da manhã sendo arrumado na cozinha, o pão estalando com manteiga.

As brincadeiras no jardim de buxinho impedindo o caminho das formigas, a chamada para o caracol sair da casa, vem para fora que tem sol, o almoço de mão lavada, cabelos úmidos para trás, a galinha assada luminosa. A tarde demorando a passar em ouro e tanajuras. Mais longe, a terra dura, o aboio, uma pequena boiada passando eternizada pelo cheiro delicado do estrume. O tempo parado.

Tudo era vago, gelatinoso, incerto, deslumbrante. O interesse se comprometia todo com um pé de galinha, a sensação primitiva daquela pele, a curva feroz daquela unha. Só nos lembramos de verdade daquilo que miramos com atenção desatenta, que fica preso naquele fundo de alma, na borra que o hábito não cobriu, lugar sem chave. É lá que se grudam as memórias, a essência, o perfume, todos os vidrilhos de cada eu, coisas das mais simples, nosso mundo vivido, embrulhado, escondido de nós mesmos. 

Queremos memória, as horas infinitas, o bem-estar, o pequi, a goiaba verde, o melão-de-são-caetano gosmento, a haste ensolarada de capim, os biscoitos amarelos muchibentos com gosto de armário. Os porcos debaixo da casa, espanto e medo, os fantasmas solenes das varandas mineiras de poucas palavras e muita tosse.

E as memórias só surtam na hora do desastre, do choque, quando se pisa no tomateiro e a lembrança vem inteira, o tempo, a hora, o cigarro; a barba áspera, a promessa segura do abraço. Queremos ir longe, ao dia em que deixamos de ser peito, praia, nuvens, bicho de goiaba. Queremos a hora da borboleta, do desatar, em que viramos “eu”, a manga é a manga, eu sou eu. Saudades de nós mesmos, naquele lugar, com aquela gente.

 

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