Leia o 1º capítulo de "Prisioneiras", novo livro de Drauzio Varella

Em 1999, Drauzio Varella lançou Estação Carandiru, livro onde relatou dez anos de experiência como médico voluntário na Casa de Detenção de São Paulo, desativada em 2002. Com este livro, Varella revelou o código penal não escrito que guiava a população carcerária - criado pelos próprios detentos. Um dos livros mais celebrados do autor, Estação Carandiru foi adaptado para os cinemas por Hector Babenco em 2003. Drauzio Varella voltou a narrar o cotidiano dos presídios brasileiros em Carcereiroslançado em 2012. Mas dessa vez ele mostrou o outro lado da moeda: a vida dos agentes penitenciários com quem se reunia em um botequim de frente para o Carandiru.

Dezoito anos após o lançamento do primeiro livro, Drauzio Varella encerra sua trilogia do sistema carcerário com Prisioneiras, onde as protagonistas são as mulheres da Penitenciária Feminina da Capital, que abriga mais de duas mil detentas. Neste livro, Varella mostra que o presídio feminino guarda muitas semelhanças com o masculino, mas também aponta grandes diferenças no tratamento das presas: desde a dinâmica dos atendimentos e a escassez de visitas até os relacionamentos entre as presas, fica nítido que a realidade das prisões escapa ao imaginário de quem vive fora delas.

Prisioneiras, que chega às livrarias no próximo dia 10 de maio, é um relato franco, sem julgamentos morais, que não perde o senso crítico em relação às mazelas da sociedade brasileira. Nesse encerramento de ciclo, Drauzio Varella reafirma seu talento de escritor do cotidiano, retratando sua experiência e a vida dessas mulheres com a mesma disposição, coragem e sensibilidade que empreendeu ao iniciar seu trabalho nas prisões há quase três décadas.

A seguir, leia o primeiro capítulo de Prisioneiras. 

* * *

A chegada

— Seja bem-vindo à casa das doidas, doutor.

Com essas palavras fui recebido pelo funcionário atarracado que me abriu o portão de ferro sob o pórtico que dá acesso aos jardins da Penitenciária do Estado, construída como prisão-modelo nos anos 1920, pelo arquiteto Ramos de Azevedo, o mesmo que projetou o Teatro Municipal de São Paulo, obra-prima da arquitetura paulistana do início do século XX.

Segui pelo caminho de asfalto margeado por pinheiros e sibipirunas centenárias que projetam um sombreado generoso à passagem do visitante. Chegando ao presídio, à esquerda, um taquaral cerrado, com bambus amarelos de mais de vinte metros de altura; à direita, três policiais militares conversavam junto às portas abertas de uma viatura. À minha frente, a muralha com as guaritas de vigia e o portão cinza de madeira maciça com mais de um palmo de espessura, suficientemente largo para dar passagem aos caminhões de entrega, alto, majestoso como o das fortalezas
medievais. Na parede acima dele, gravado em letras pretas: “Instituto de Regeneração”.

Sambista, funcionário que eu havia conhecido nos tempos do antigo Carandiru, abriu a pequena porta que dá passagem aos transeuntes, encravada no portão monumental, e me estendeu a mão, sorridente:

— Firmeza, doutor? Com nós outra vez?

Atravessei a portaria, cumprimentei a funcionária do guichê aberto à direita e me dirigi à gaiola gradeada que dá acesso ao pátio interno.

No pátio amplo, doze palmeiras-imperiais contra o céu — duas delas tão imponentes quanto as mais altas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro — e um jardim de cada lado com azaleias e roseiras floridas, ambos cercados com tela de arame para conter os patos barulhentos criados em seu interior. À minha frente, o prédio da administração, acessível por duas escadarias laterais que se unem num terraço de entrada. No frontispício, os dizeres gravados há quase um século: “Aqui, o trabalho, a disciplina e a bondade resgatam a falta cometida e reconduzem o homem à comunhão
social”.

No centro, sob as escadas e o terraço, um portão gradeado dá acesso à galeria central que atravessa e divide a penitenciária em duas metades. A três metros dele, outro portão forma uma nova gaiola. Entre os dois, uma sala de controle gradeada, com duas funcionárias em escrivaninhas da metade do século passado e computadores quase da mesma época ligados a um emaranhado selvagem de fios. Na parede, uma tábua larga com uma dúzia de algemas penduradas.

Ao lado dessa sala, há dois corredores. O que fica à esquerda de quem entra leva à enfermaria e às celas de inclusão, parada obrigatória das presas recém-chegadas enquanto aguardam a distribuição pelos pavilhões. O do lado oposto conduz à cozinha industrial, ampla e espaçosa, que parece um formigueiro de mulheres de calça laranja e touca branca.

Seguindo em frente e em linha reta pela galeria central, até o fundo da cadeia, há que atravessar as gaiolas de entrada do Primeiro, Segundo e Terceiro Pavilhão.

Eu conhecia bem o ambiente. Depois da implosão do Carandiru, havia trabalhado lá como voluntário durante três anos, até a Penitenciária do Estado deixar de ser a cadeia masculina que historicamente foi. Saí quando começaram a transferir os presos para dar lugar às mulheres que superlotavam as prisões femininas existentes no estado.

Já tinha vivido a experiência da desativação do Carandiru. Nada mais deprimente do que o silêncio, o eco das portas de ferro nas galerias desertas, um ou outro detento contemplativo à porta da cela, guardas ensimesmados na cadeira ao pé da gaiola. O vai pra lá e pra cá, o entra e sai dos xadrezes, o passa-passa agitado é o que dá vida às cadeias; sem esse movimento constante desde a abertura, às oito da manhã, até a tranca no fim da tarde, a atmosfera é tomada pela melancolia das horas que se arrastam. Quando a noite cai, o ambiente é o de um casarão mal-assombrado.

Logo à esquerda, antes da grade de acesso aos pavilhões, a sala de atendimento estava lotada. Numa mesinha, o funcionário Valdemar Gonçalves, que me acompanha desde os tempos do Carandiru, colocava em ordem os prontuários médicos e distribuía senhas de atendimento às prisioneiras, vestidas de calça cáqui e camiseta branca. Uma cortininha fazia a separação entre a sala de espera e o consultório, que não passava de um compartimento espremido, sem janela, com uma mesa de plástico, duas cadeiras do mesmo material e a maca para exame ginecológico.

Os problemas de saúde eram muito diferentes daqueles que eu havia enfrentado nas prisões masculinas. Em vez das feridas mal cicatrizadas, sarna, furúnculos, tuberculose, micoses e as infecções respiratórias dos homens, elas se queixavam de cefaleia, dores na coluna, depressão, crises de pânico, afecções ginecológicas, acne, obesidade, irregularidades menstruais, hipertensão arterial, diabetes, suspeita de gravidez. Afastado da ginecologia desde os tempos de estudante, eu não estava à altura daquelas necessidades.

O falatório ininterrupto na sala de espera era de atordoar. Por duas vezes precisei interromper a consulta e abrir a cortina para explicar que não conseguia auscultar os pulmões nem medir a pressão de ninguém no meio daquela balbúrdia, advertência jamais necessária em presídios masculinos.

Num aspecto, entretanto, as duas experiências se assemelhavam: o grande número de doentes à espera, realidade que torna impossível dedicar muito tempo à mesma pessoa, tarefa especialmente árdua no caso das poliqueixosas. Com a sala de espera apinhada, é impossível resolver os problemas de alguém que diz sofrer de “agulhadas pelo corpo inteiro, problema de tireoide, bronquite, prisão de ventre, enjoo, falta de apetite, dor nos rins, pressão alta, bexiga caída e sistema nervoso” — queixas que me foram apresentadas, exatamente nessa ordem, por uma senhora de cabelo comprido à moda evangélica, presa na divisa do Paraná com vinte quilos de maconha no fundo falso do porta-malas do carro do marido, que desconhecia as atividades ilícitas da esposa. Ou satisfazer às expectativas de uma jovem de aparência saudável que alegava ter vindo à consulta com o objetivo de “fazer todos os exames”.

Quando já havia consultado perto de vinte pacientes, outras tantas para ser atendidas, uma gritaria assustadora ecoou pela galeria.

É preciso ter sangue-frio nessas horas. A mais insignificante demonstração de insegurança ou nervosismo pode ser interpretada como covardia e jogar por terra uma reputação construída no decorrer de muitos anos. Permanecer impassível, quando o impulso natural é fugir de medo, exige autocontrole e experiência prévia. Levantei e abri a cortininha do consultório no exato instante em que o tropel invadiu a sala de espera aos gritos de sai da frente, sai da frente. No meio da confusão, vi uma loira miúda com o rosto e o cabelo ensanguentados carregada por duas mulheres
que a seguravam pelos braços e por outras duas que lhe sustentavam as pernas, enquanto uma negra forte de calça justa e seios fartos amparava a cabeça desfalecida.

Só consegui que a moça chegasse à maca do consultório quando gritei para que abrissem caminho e parassem com o escândalo. Disseram que se chamava Marcinha. Tentei despertá-la repetindo seu nome junto ao ouvido. Não respondia, mas não parecia desacordada, tinha o pulso cheio, os batimentos cardíacos em ritmo normal e as pálpebras trêmulas e resistentes quando eu forçava a abertura dos olhos.

Molhei um pano para enxugar o sangue e identificar a fonte do sangramento. Todas se afastaram, menos a negra forte, Janaína, que permaneceu aflita à cabeceira da maca, balbuciando palavras indecifráveis em ritmo de oração religiosa. Imaginei que a hemorragia viesse do couro cabeludo, região muito vascularizada, capaz de espalhar sangue pelo corpo inteiro, mas nada encontrei. Com delicadeza, acabei de limpar a face: nenhum ferimento.

Só então percebi que a mão direita tinha diversos cortes, pequenos e superficiais:

— Ela esfregou a mão no rosto? — perguntei a Janaína.

— Acho que sim — respondeu —, nós tivemos um desentendimento.

Com os olhos marejados, debruçou-se sobre a maca, beijou a testa e acariciou o rosto de Marcinha, a quem chamou de minha lindinha, meu bichinho do mato e amorzinho do meu querer.

Quando comecei o curativo, a loirinha abriu os olhos com ares de quem despertou em Alfa Centauro, olhou para a mão e depois para a namorada como a pedir explicação:

— O doutor vai resolver, foi um machucadinho de nada — disse Janaína.

Saíram da sala abraçadas, Janaína amparando o amorzinho do seu querer, que andava com passos firmes, prontamente restabelecida.

Fui lavar as mãos na pia. Quando voltei, uma das detentas que havia trazido a paciente desabou na cadeira em frente à minha:

— Ai! Agora eu é que preciso de médico. Estou à beira de um colapso de nervos.

Era Marise, magra e de rosto sardento envelhecido para os quarenta e poucos anos que deveria ter. Medi a pressão, contei o pulso, auscultei o coração e procurei tranquilizá-la.

Mais calma, ela se apresentou como a líder da cadeia, ligada à facção que dominava todos os presídios femininos de São Paulo e a maioria dos masculinos, condenada a 26 anos, conforme justificou:

— Por envolvimento em dois sequestros, entre outros beós mais leves.

Queixou-se de que estava exausta, não suportava mais tanto estresse.

— Tudo que acontece no pavilhão é comigo. Sou eu pra cá, eu pra lá, eu pra acolá o tempo inteiro. Ainda enlouqueço neste inferno. Cadeia foi feita pra homem, doutor, mulher não tem procedimento. Aqui elas brigam até por um lugar no varal pra pendurar a calcinha.

Não precisei insistir para que ela descrevesse com minúcias o conflito que acabara de ocorrer.

Marcinha e Janaína moravam na mesma cela. As brigas por ciúmes eram tantas que a mulata andava pela galeria de cabeça baixa:

— Para não atiçar a onça com vara curta.

Naquela tarde, Janaína estava sozinha, ocupada com a faxinada cela, quando uma vizinha de seios tão exuberantes quanto os dela, cabelo vermelho e calça justa, entrou para pedir um sabão emprestado. Era Silvana, garota de programa dependente de cocaína, que fora presa por aplicar o conto do suador, modalidade na qual o cliente era chantageado e achacado em pleno ato sexual por um gigolô que se fazia passar por investigador de polícia.

Marcinha, que não mantinha relações propriamente cordiais com Silvana, apareceu como um raio na porta da cela.

— Tá querendo o que com a minha mulher, sua vagabunda? Já não avisei pra ficar longe dela?

Janaína tentou justificar a presença da vizinha, que se retirou incontinente. Falou do sabão, da falta de interesse pela outra, do amor que sentia pela namorada possessiva, mas foi de pouca valia. Pelo contrário, quanto mais Janaína explicava, pior, mais agitada ficava a companheira.

Num repente, a loirinha levantou o colchão da cama, colocou uma lâmina de barbear entre os dedos e avançou na direção de Janaína, muito mais forte do que ela.

— Vou te transfigurar, sua puta sem-vergonha. Quero ver que mulher vai olhar pra tua cara.

Entre as que se agruparam à porta do xadrez à espera do desenlace, dona Assunção do Bexiga, traficante de crack com diversas passagens, que meses mais tarde tratei de pneumonia, correu para chamar Marise, que conversava com uma amiga no pátio interno. Só ela para impedir o desfecho sangrento.

Na cela, a líder encontrou Marcinha furiosa, a desferir golpes de lâmina na direção do rosto da parceira, que os aparava com uma toalha de banho enrolada no braço.

— Para já com isso, maluca — Marise gritou com autoridade.

Foi como se tivesse falado com a parede. Repetiu a ordem diversas vezes, aos berros. 

Convencida de que a agressora acabaria atingindo a outra, justamente numa semana em que havia recebido ordens da facção para manter o pavilhão em paz, Marise descalçou a sandália e começou a bater na mão que segurava a lâmina.

Quando Marcinha viu o sangue escorrer entre os dedos, apressou-se em espalhá-lo pelo rosto. Em seguida, caiu para trás como se tivesse perdido os sentidos.

* * *

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