Literatura numa hora dessas?

17/03/2016

Por Martha Batalha

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Um dos meus poemas preferidos é “Mensagem à poesia”, de Vinicius de Moraes. Nele, Vinicius se declara incapaz de lirismos por causa das misérias à sua volta. Ele avisa à poesia que um dia irá encontrá-la, mas que não pode agora, porque “há um herói num cárcere / Há um lavrador que foi agredido, há uma poça de sangue numa praça”.

Nas últimas semanas tenho pensado muito nestes versos. Principalmente quando, na minha hora sagrada de escrita, eu tranco a porta do quarto, fecho as janelas e ligo o computador, mas em vez de abrir o Word eu navego pelo Facebook.

O que temos para hoje, eu me pergunto. A imagem de milhões de brasileiros nas ruas, a íntegra de alguma delação premiada, Lula se tornando ministro enquanto responde a uma investigação. O status de gente que me ajuda a ver melhor o que está acontecendo no país, o status de gente que me ensina sobre os preconceitos neste mesmo país.

Não tenho o hábito de procrastinar. Na parede próxima ao meu computador escrevi um conselho do Dalai Lama: “Não procrastine. Esteja preparado para morrer hoje e não ter arrependimentos. Sua percepção de tempo ficará cada vez mais forte”. Além do Dalai Lama, é o salário da baby-sitter que me impele à escrita — não dá pra pagar quinze dólares a hora pra se perder em devaneios na rede.

Mas com tantas coisas acontecendo no Brasil, é impossível ficar alheio aos acontecimentos, mesmo morando tão longe, na Califórnia. E, no fundo, o que me leva a passear pela rede é menos uma questão de procrastinar, e mais uma questão de me formar como brasileira e ser político.

Pessoas escrevem por diferentes motivos. Eu escrevo para entreter o leitor, para contar do que sei, e para tentar entender melhor o tempo e espaço em que vivo. Desde muito cedo as injustiças no Brasil me incomodam, e planejo escrever sobre elas. O que aprendi com meu primeiro romance, A vida invisível de Eurídice Gusmão, é que não seria sincero escrever sobre os temas que mais me preocupam — violência nas favelas, demarcação de terras indígenas, corrupção em Brasília. Eu precisava escrever sobre as pequenas injustiças que conhecia. Na minha família, no meu bairro. Na vida de classe média tão sem glamour, que passa despercebida. Foi assim que nasceu Eurídice, uma dona de casa de um bairro ordinário no Rio, a Tijuca. Eurídice tem uma vida absolutamente vulgar, e precisa lidar com as aporrinhações do cotidiano — o marido controlador, a vizinha fofoqueira, a falta de perspectivas.

Meu segundo romance já está escrito. Também falará das injustiças, mas desta vez o público interfere mais no privado. Grande parte da trama se passa nos anos 1960 e 1970, e a ditadura aparece como personagem, incontornável. Mas o que aprendi, nos caminhos a que fui levada pelas figuras que criei, é que é possível falar de política sem falar de política. Estela, a protagonista, é uma mulher tão preocupada com o que acontece dentro de seu apartamento que se abstém de notar o que se passa no país.

No início do mês, comecei a escrever meu terceiro romance. É uma história de família, que também se passa nos anos 1970 e segue até os dias de hoje. Desta vez o público vai interferir muito mais no privado. Não só porque as deficiências do Estado Brasileiro influenciam drasticamente o dia a dia de seus cidadãos, mas porque eu, como a maioria dos meus conterrâneos, vivo um momento de intensa análise histórica. Está todo mundo clicando e reclicando no Facebook, conferindo os tweets de quem segue, lendo as manchetes de quatro ou cinco jornais diferentes, procurando pelas melhores colunas para tentar entender um momento que só ficará mesmo claro quando tiver passado. Esta confusão marcará a minha escrita, e também os caminhos dos meus personagens, dos anos 1970 até agora.

Então eu volto aos versos de Vinicius. E respondo para ele, e para a poesia: Não é que eu não possa estar com você agora, poesia. É que eu preciso de você para falar do herói num cárcere, do lavrador que foi agredido, da poça de sangue numa praça — e do aumento das passagens, do tempo de espera pelo trem, do gás de pimenta no rosto dos estudantes, do povo brasileiro refém dos políticos. Talvez eu precise muito, muito mais de você. Meu desafio é fazer uma literatura que fale de moral sem ser moralista, que fale de política sem ser panfletária. O que descobri, nas vezes em que me torno uma narradora opinativa e revoltada (e preciso deletar minhas próprias palavras), é que o segredo está em deixar os personagens viverem suas vidas. Eles saberão me guiar. E me ajudarão, espero, a fazer um texto repleto de história e poesia.

 

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vidainvisivelA VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO

Sinopse: Guida Gusmão desaparece da casa dos pais sem deixar notícias, enquanto sua irmã Eurídice se torna uma dona de casa exemplar. Mas nenhuma das duas parece muito feliz nas suas escolhas. A realidade das Gusmão é parecida com a de inúmeras mulheres nascidas no Rio de Janeiro nos anos 1920 e criadas para serem boas esposas. São as nossas mães, avós, bisavós; invisíveis em maior ou menor grau, que não puderam protagonizar as próprias vidas, mas que agora são as personagens principais do primeiro romance de Martha Batalha. Uma promessa da ficção brasileira que chega afiadíssima para contar uma infinidade de histórias bem costuradas e impossíveis de largar.

A vida invisível de Eurídice Gusmão está em pré-venda: [Saraiva] [Cultura] [Livraria da Folha] [Amazon] [Livraria da Travessa]

 

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Martha Batalha nasceu em Recife em 1973, e cresceu no Rio de Janeiro. Jornalista com mestrado em literatura pela PUC-Rio e em Publishing pela NYU, trabalhou em jornais como O Globo e criou o selo Desiderata, hoje da Ediouro. Vive na Califórnia. Em abril, lança pela Companhia das Letras seu primeiro livro, A vida invisível de Eurídice Gusmão.

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