Manual do líder autoritário

18/12/2018

 

O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, vem sendo chamado indistintamente de “fascista” e “nazista” nas internetes da vida. Sua eleição já foi qualificada como uma “escalada autoritária”, que poderia devolver o Brasil a um regime de exceção. Há motivo para pânico?

Neste momento da vida nacional, vale a pena nos socorrermos de um livro publicado pela primeira vez há mais de 60 anos e segue atual em muitos aspectos. Falo de Origens do totalitarismo, da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975), uma das peças de ciência política mais importantes do século 20.  A obra, que teve sua primeira edição em 1951, analisa três fenômenos aparentemente díspares – o antissemitismo, o imperialismo e o totalitarismo — que confluíram para os governos de terror da Alemanha nazista e da União Soviética stalinista.

Leitores que tentam antecipar como a banda vai tocar por aqui no governo Bolsonaro encontrarão na obra de Arendt um pequeno alento: o Brasil está muito longe de se tornar um Estado totalitário. Esse tipo de regime teve características muito próprias, que responderam ao contexto da época e que são difíceis de se repetir. Para Arendt, Adolf Hitler, pela direita, e Josef Stálin, pela esquerda, foram os únicos líderes totalitários “raiz” da história, e a Alemanha e a URSS daquele período, os únicos exemplos acabados de Estado totalitário que já existiram. Todos os outros, inclusive o pai do fascismo, Benito Mussolini, são, por assim dizer, totalitários “Nutella”.

Isso porque a receita de uma ditadura total requer ingredientes muito particulares, entre eles uma grande população (que possa ser exterminada em massa), o poder absoluto do Estado e seu líder sobre todas as esferas da vida, inclusive a vida privada, e uma pretensão de dominação mundial. Nem mesmo as mais sanguinárias ditaduras militares latino-americanas preenchem o checklist arendtiano. Embora setores da tal “nova direita populista” tenham aspirações de domínio global, o fracasso (até aqui) do ideólogo americano Steve Bannon na tentativa de unir neofascistas do mundo inteiro autoriza descartar a ressurgência do totalitarismo de livro-texto. Portanto, o leitor pode respirar aliviado -- não estamos rumando para um nazismo tropical.

O que não quer dizer que o que vem por aí não vá ser muito ruim. Porque os paralelos entre os movimentos descritos por Hannah Arendt e a  moderna direita populista, que inclui Bolsonaro, são diversos. E arrepiantes.

O gramado sobre o qual tiranias totalitárias cavalgam, segundo o livro, é o de uma sociedade atomizada, na qual uma aliança temporária entre a elite e a ralé se forma e massas revoltadas com o status quo são capturadas e organizadas por um partido. Esse caldo de cultura existiu na Europa a partir dos anos 1920, como oposição a uma burguesia que “afirmava ser a guardiã das tradições ocidentais e confundia todas as questões morais exibindo em público virtudes que não só não incorporava na vida privada e nos negócios, mas que realmente desprezava”.

A “nova classe média” bolsonarista e evangélica — e também a velha classe média conservadora e afetada pela crise — parece se revoltar contra dubiedade moral semelhante de setores ditos progressistas da sociedade e contra a classe política, que enxergam como uma casta cuja imoralidade foi desnudada pela Lava Jato. Aqui, como na Alemanha dos anos 1930, essa turma (a “ralé”) forjou uma aliança temporária com setores importantes do empresariado (a “elite”), que antecipam uma era de desregulação total de suas atividades. Diferentemente do que ocorreu na Alemanha, porém, a elite intelectual brasileira não tem acompanhado o fascínio da elite econômica por Bolsonaro.

Essa aliança é impulsionada pela atomização da sociedade, um fenômeno visto na crise dos Estados nacionais do começo do século passado, mas que pode encontrar um paralelo no fenômeno das “bolhas” das redes sociais. Arendt aponta no isolamento político, fruto da atomização social, o “solo mais fértil” ao totalitarismo. Ela define o isolamento como “aquele impasse no qual os homens se veem quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída”. A destruição da esfera política no Brasil, cuja responsabilidade é atribuída à esquerda, foi um elemento central para a ascensão das máquinas de propaganda que culminaram no triunfo da extrema direita tapuia.

Mas as semelhanças mais impressionantes entre o bolsonarismo e os regimes soviético e alemão estão em duas outras características: a necessidade de movimento constante e o uso da mentira como base do discurso político e da construção de mundo.

O totalitarismo, como alguns tubarões, não podia ficar parado. Segundo Arendt, esta é a “essência dos movimentos totalitários, que só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem esse movimento a tudo o que os rodeia”. (Steve Bannon escolheu justamente a palavra “Movimento” para batizar seu até agora frustrado projeto totalitário de uma internacional direitista.) A mobilização constante das massas e dos simpatizantes é também uma característica da atual direita populista — vide a obsessão de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro com a geração de “buzz”, seja pelos seus discursos fortes, seja pelos atos, seja pelos recuos. O que importa é ser objeto das conversas na sociedade e nos meios de comunicação; coerência é secundária. As idas e vindas do presidente eleito durante a transição, interpretadas por alguns como bateção de cabeça, são parte de um manual de operações antigo, cujo foco é produzir mobilização constante em seus apoiadores.

A ficção como programa político é considerada por Arendt a característica mais perturbadora do totalitarismo, por abrir as portas para o terror. O fenômeno descrito por ela é o mesmo que existe hoje, em escala exponencial, e chamado de “firehosing”, ou torrente de mentiras.

 “A força da propaganda totalitária [...] reside em isolar as massas do mundo real”, escreveu a filósofa. “Os únicos sinais que o mundo real oferece à compreensão das massas desintegradas e em desintegração — que se tornam mais crédulas a cada golpe de má sorte — são, por assim dizer, as lacunas, as perguntas que ele prefere não discutir em público, os boatos que não ousa contradizer porque ferem, de modo exagerado e distorcido, algum ponto fraco. É desses pontos fracos que as mentiras da propaganda totalitária extraem o elemento de que necessitam para transpor o abismo entre a realidade e a ficção”.

O trecho acima de Origens do totalitarismo poderia ter saído de uma análise qualquer publicada hoje sobre a eleição brasileira. Jair Bolsonaro ganhou a eleição explorando justamente lacunas e boatos que a esquerda preferiu não discutir em público e transformando-as numa sequência interminável de mentiras entregues na mão de cada brasileiro munido de um smartphone.

Fraudes evidentes como o “kit gay”, a “venezuelização” promovida pelo PT, a “caixa preta do BNDES” em seus empréstimos a Cuba e a “Marina Silva aborteira”, disseminadas por um esquema de distribuição eficientíssimo e ainda não elucidado via WhatsApp (chupa essa uva, Goebbels), amparam-se todas em pequenos elementos de realidade que não encontraram a seu tempo desmentidos veementes o bastante porque possuíam elementos mínimos de realidade que criavam incômodos à esquerda. Para citar apenas um caso, o fato de Dilma Rousseff ter suspendido o programa Escola sem Homofobia diante da pressão dos evangélicos deu a Bolsonaro um cavalo de batalha — que nos legou o legitimamente fascista Escola sem Partido, o qual reage a uma doutrinação “marxista-gayzista” fictícia para introduzir censura real nas escolas.

O passo seguinte desse “crescendo” ficcional no manual fascista é a teoria da conspiração — a ideia de um inimigo que destruirá a nação e do qual só o líder totalitário poderá salvar a sociedade. No fim da República de Weimar, a fake news da vez era o Protocolo dos Sábios de Sião, um livro apócrifo sobre uma conspiração judaica para dominar o mundo. Assimilada sem questionamentos pelas massas alemãs após a eleição de Hitler, essa mentira foi instrumental para o genocídio dos judeus na Europa. Na URSS, a conspiração era “imperialista” ou “contrarrevolucionária”. Assim como na Alemanha, o resultado eram campos de concentração e assassinatos em massa de inimigos do regime.

“A propaganda totalitária pode insultar o bom senso apenas quando o bom senso perde sua validade”, escreveu Arendt. “Entre enfrentar a crescente decadência, com sua anarquia e total arbitrariedade, e curvar-se ante a coerência mais rígida e fantasticamente fictícia de uma ideologia, as massas provavelmente escolherão este último caminho, dispostas a pagar por isso com sacrifícios individuais – não porque sejam estúpidas ou perversas, mas porque, no desastre geral, essa fuga lhes permite manter um mínimo de respeito próprio.”

No Brasil bolsonarista, o inimigo são os “vermelhos” ou tudo que tenha relação com a esquerda que “destruiu o país” e que, se voltar ao poder, vai fazer a gente “virar uma Venezuela” (não importando que isso jamais tenha acontecido durante os 13 anos que o PT teve a oportunidade de fazê-lo). Do mesmo modo como o stalinismo enxergava imperialistas em cada esquina, o bolsonarismo vê em qualquer crítica um traço inegável de marxismo. Em seu célebre discurso da Avenida Paulista no domingo anterior à eleição, Bolsonaro jurou mandar seus adversários para a “ponta da Praia”, apelido de uma base da Marinha onde opositores da ditadura eram executados. Parte da conspiração vermelha, claro, está na imprensa, que o presidente eleito ameaçou de forma sem precedentes em 33 anos de redemocratização.

Para quem espera uma normalização progressiva do governo Bolsonaro após a posse (o que não aconteceu nos EUA, nem na Turquia, nem na Hungria, nem nas Filipinas), Hannah Arendt tem uma má notícia: faz parte do manual autoritário prometer estabilidade e entregar “instabilidade permanente”. Muita gente nos anos 1930 esperou que o peso de gerir um país levasse os nazistas ao comedimento, mas o que se verificou foi o oposto. “Entre os erros cometidos pelo mundo não totalitário em suas negociações diplomáticas com os governos totalitários [...] muitos resultaram da aplicação da experiência e do bom senso a situações em que se haviam tornado obsoletos”, conta.

Esse estado permanente de anomalia é reforçado pelo exército de malucos que de repente passa a ocupar postos elevados na administração pública. “O totalitarismo no poder invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam as suas simpatias, pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade é ainda a melhor garantia de lealdade”, comentou Arendt. Donald Trump ticou mais esse item do manual ao nomear, por exemplo, o néscio Scott Pruitt como ministro do Meio Ambiente. Bolsonaro pareceu por um momento ter escapado a essa escrita, mas só até começar a ter ministros indicados por um astrólogo. 

Esse quadro todo pode levar líderes autoritários a decisões que atentam contra o interesse nacional, prossegue a filósofa alemã. A gente também vê por aqui. Quem apostou, por exemplo, que Donald Trump não pularia fora do Acordo de Paris porque a desistência não faria o menor sentido econômico para os EUA e que a retórica trumpista cederia ao peso da realidade quebrou a cara. A única coisa a moderar Trump até agora têm sido os freios e contrapesos institucionais da democracia mais antiga do mundo. As investidas retóricas de Bolsonaro e auxiliares contra o acordo do clima, as regulações ambientais, a China, a globalização econômica e o mundo árabe parecem ir no mesmo sentido. A conferir se os checks and balances brasileiros funcionarão tão bem.

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

 

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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