Mulheres

03/05/2016

Por Martha Batalha

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Foram duas semanas de extremos, com o perfil da bela e recatada Marcela Temer, e da voluptuosa e luxuriante miss Bumbum. E ainda teve Erundina gritando “É golpe”, depois de Cunha manobrar uma eleição na Câmara contra os direitos das mulheres. O deputado Flavinho do PSB dizendo que mulher “de verdade” não quer poder, quer é ser amada. O cancelamento de uma palestra sobre direitos das mulheres no colégio Salesiano, em Niterói, porque grupos religiosos associaram o tema à pauta de esquerda.

Nos meses anteriores teve Câmara aprovando projeto que dificulta o aborto legal. E a mulherada indo pra rua, com muita raiva do autor da proposta, Eduardo Cunha (ele, de novo, como sempre). Enquanto isso, editoras do mundo inteiro negociavam a publicação dos livros esgotados ou não traduzidos de Svetlana Aleksiévitch, como o que traz depoimentos de mulheres russas no front da Segunda Guerra. A desconhecida Elena Ferrante, com sua escrita universal, lançava best-sellers que contêm o ponto de vista feminino (uma literatura sobre mulheres, e não para mulheres). E Chimamanda Ngozi Adichie vendia centenas de milhares de exemplares de seu preciso e precioso manifesto feminista (onde diz, simplesmente, que feminismo é tratar os outros com respeito).

Que época para ser mulher, escrever, e tentar entender o Brasil e o mundo. É o que penso o tempo todo, foi o que pensei ontem, depois de terminar a releitura de 1968, o ano que não terminou, de Zuenir Ventura. Olha, Zuenir, a gente está com um 1968 por mês, quero ver quem será o gênio capaz de escrever 2016, o ano que englobou uma década.

No meio de tanta coisa eu me pergunto qual a missão do escritor (eu sei, missão é uma coisa meio 1960, mas acho mesmo que o escritor tem um papel a cumprir, principalmente em tempos conturbados como este). E acredito que este papel, esta missão, seja desconstruir estereótipos.

Marcela Temer, por exemplo. No fundo não importa se ela é bela, recatada e do lar. Que goste de cores claras, saias na altura do joelho e cabelos com luzes fininhas. Para mim ela poderia passar o resto de seus dias fazendo bolinhos de chuva para o filho Michelzinho, que eu não ligaria. O importante, no caso, é que uma reportagem escrita por uma mulher escolhe os termos “bela”, “recatada” e “do lar” como principal forma de definir -- e elogiar -- outra mulher. Não é Marcela que está errada, mas as escolhas da jornalista, e o espaço dado na imprensa para esse tipo de perfil.

Ou Milena Santos, a miss Bumbum e primeira-dama do turismo brasileiro. Esta nem precisa ser definida por jornalistas, porque se tornou um estereótipo de si mesma. Abandonada pela mãe, cresceu numa favela e usou o corpo como moeda de troca. E o corpo como moeda não é, neste caso, um problema em si. O problema é que Milena deve ter crescido tão influenciada por estereótipos (das novelas, das músicas, das revistas femininas), e acreditado tanto nas imagens pré-fabricadas, que se tornou, ela própria, uma imagem pré-fabricada.

Marcela Temer e Milena Santos me fizeram refletir sobre meu primeiro romance. Sem perceber (e acredito profundamente no subconsciente na hora da escrita) eu fiz das duas protagonistas, Eurídice e Guida, lutadoras contra estereótipos. Eurídice é tida como bela, recatada e do lar. Guida é vista como deslumbrante, efusiva e da rua. Durante toda a trama elas tentam se desfazer destes estereótipos. Isso em 1940.

Estamos em 2016, e as questões continuam as mesmas. A mudança da mulher na sociedade -- e da percepção da mulher na sociedade -- passa primeiro pela mudança da construção da imagem desta mulher. E isso é com a gente -- escritores, editores, designers, roteiristas, músicos, pintores, desenhistas, jornalistas.

Outro dia li um quadrinho de uma desenhista de Brasília, a Lovelove6. Em poucas linhas ela deu um recado fundamental para quem faz arte hoje no Brasil:

“Autores costumam considerar suas tramas apenas quando a mulher tem função sexual no roteiro, ou quando o foco da sua representação é estereotipado -- a mãe, a filha, a esposa, a mulher, a prostituta.” No caso da protagonista, a mulher é “jovem, branca, magra, atraente e heterossexual, de traços finos e cabelos lisos”.

Para Lovelove6 (e para mim), não tem que ser assim. E esta é a parte mais linda:

“Sério, caras, as mulheres não precisam despertar o seu tesão e vocês não têm que querer comer todas. Na maior parte das vezes as mulheres estão por aí, existindo de boa, como as pessoas fazem. Se virando, trabalhando, querendo ter pensamentos complexos e profundos, querendo vencer e crescer, como você.”

É isso, companheiros artistas. A marquinha de catapora no queixo de uma mulher não tem que ser sexy. Pode ser a lembrança de uma noite de muita febre na infância, em que foi gostoso dormir na cama dos pais. A gente usa minissaia não para despertar instintos, mas porque aqui faz quarenta graus. Mulher também faz os cálculos para ver quando vai se aposentar, sonha com aquela casinha de campo, já pensou em estudar violão ou tocar tambor. Acorda suada depois de um pesadelo, cheira o garfo com comida, corta as unhas perto do sabugo e depois se arrepende. Já cogitou largar tudo e recomeçar muito longe. Consegue -- ou não -- fazer as palavras cruzadas sem olhar para as dicas da última página. Tem medo -- ou não -- de espíritos. Jogou no bicho, quase acertou a quina, perdeu tempo numa fila, se irritou com a porta giratória do banco. E até mesmo Marcela Temer com todo o seu recato, e Milena Santos com todo o seu silicone, ou as duas com todos os seus estereótipos, já pensaram, sentiram ou viveram algumas das coisas descritas acima.

 

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Martha Batalha nasceu em Recife em 1973, e cresceu no Rio de Janeiro. Jornalista com mestrado em literatura pela PUC-Rio e em Publishing pela NYU, trabalhou em jornais como O Globo e criou o selo Desiderata, hoje da Ediouro. Vive na Califórnia. Em abril, lançou pela Companhia das Letras seu primeiro livro, A vida invisível de Eurídice Gusmão.

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