Na beira do mar, imaginando um país

16/03/2017

Bandeira da República da Califórnia, 1846.

“…você me abre seus braços/ e a gente faz um país”.

Sempre tive um carinho especial por essa canção de Marina e Antonio Cícero. Não só porque é uma canção gostosa que marcou uma época boa para mim, mas principalmente pela letra de Antonio Cícero, descrevendo de um modo tão preciso e tão generoso o estado de graça do afeto pleno. Esse verso final, em especial, colou na minha memória, vivo em suas múltiplas possibilidades.

Quando eu poderia imaginar que, 33 anos depois, num fim de semana de primavera à beira do Pacífico em Santa Monica, Los Angeles, eu estaria num salão com 209 outras pessoas fazendo exatamente isso – um país. E não era mais uma metáfora: era a primeira convenção do Califórnia National Party, um novo partido (social-democrata, inspirado por e alinhado com o socialism europeu) que planeja, propõe e está atuando para obter a independência da Califórnia. Ou seja, trazer a Califórnia para sua origens: a nação que foi durante vinte e cinco dias em 1846 (uma história que tem ecos repletos de ironia nos dias de hoje – os não-mexicanos que criaram a república eram “ilegais” no que ainda era uma província do México, e reinvidicavam direitos de cidadania – e que deixou para trás a bandeira do estado, o mesmo estandarte rebelde de 1846).

Já falei aqui mesmo neste espaço da minha longa e complicada tecelagem de uma identidade brasileira/não brasileira num país estrangeiro que, aos poucos, se torna o seu país. O processo que me levou àquele salão de Santa Monica tem a ver com isso. Aliás: tem a ver com o fato de que sempre, nesses 30 anos de Los Angeles, me vi mais como californiana do que como estadunidense. E ter uma família que cresceu aqui – e nasceu aqui – só fez reforçar esse sentimento: de que este lugar, entre o deserto, as cordilheiras e o Pacífico era uma entidade em si mesma, um lugar meu, uma casa.

De costas para o resto dos Estados Unidos, de frente para o mar, de braço dado com o México, olhando para a Ásia e a Oceania – onde o dia nasce e o tempo se renova –, nascida de uma revolta, permanentemente fracionada por uma falha geológica, a Califórnia tem sua própria história, muitas vezes na contramão do resto do país. Não está imune dos problemas endêmicos das Américas – racismo, classismo, exploração da mão de obra imigrante – mas tem um metabolismo rápido para processar tudo isso. When We Rise, uma minissérie de TV aberta escrita pelo premiado Dustin Lance Black (Milk, Big Love), mostra com clareza como a Califórnia rapidamente cria seu próprio ponto de vista: da paranoia da Guerra Fria aos beatniks, da Guerra do Vietnã à contracultura, de uma sociedade agressivamente heteronormativa à tolerância e inclusão de todo o espectro sexual.

Quando se pensa que um lugar assim, sempre de olho no progresso e no futuro, é também a sexta economia mundial, e o maior contribuinte para os cofres do governo federal, é fácil entender por que a ideia da independência nunca foi embora. Por aqui, quando rola um terremoto maior e começa a campanha de pânico “a Califórnia vai cair no mar!” os locais dão de ombros: melhor assim, nos livramos do resto da tralha e vamos virar uma bela ilha, com altas ondas.

A possibilidade – que depois se tornou a triste realidade – de Donald Trump na Casa Branca acelerou esse desejo, lhe deu ânimo, coragem, corpo. “Eu poderia dizer que Trump é o motivo, mas na verdade ele é apenas um sintoma de um mal maior – o fato do sistema de governo dos Estados Unidos estar quebrado”, diz Theo Slater, advogado civil e um dos fundadores do California National Party.

Fazer um país é difícil – pouparei de você, cara/o leitor(a) o longo processo burocrático de solicitar (e conseguir) a “separação pacífica da União”. Mas imaginar um país é embriagador. Das grandes ideias – teremos forças armadas? Para quê? Qual o melhor modelo para criar uma rede de saúde pública? O britânico, o alemão ou de Singapura? Como melhorar nossas escolas? Como custear o livre acesso às nossas universidades? – às minúcias – quantos meses de folga poderemos dar a famílias depois do nascimento de uma criança? Teremos novos feriados?

Lá pela quarta hora da convenção, ouvindo um especialista em direito constitucional palestrar sobre os processos ideais de solidificar a autonomia da Califórnia, comecei (talvez para impedir que meu cérebro travasse) a cantarolar mentalmente outra canção. Aquela do Raul Seixas que diz “sonho que se sonha junto é realidade.”

E, depois, pensei no meu filho. E nas minhas netas. Lá fora a neblina do Pacífico já tinha se dissolvido, e o sol brilhava, gostoso.

* * * * *

Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do Brasil e Folha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964 (Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

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Ana Maria Bahiana

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