Não saber

22/03/2017

1.
Abril de 2016.

Ela pegou o manuscrito do meu romance, passou as páginas rapidamente até localizar o que estava procurando, leu um fragmento em voz alta e opinou uma coisa que eu achei totalmente absurda. Muito absurda. Absurda mesmo. Suspirei forte, decepcionado.

– Não é isso, não, você está errada – falei.

Sei que pode parecer uma reação arrogante, mas eram dois anos de trabalho que estavam sendo julgados. O comentário, de fato, não sinalizava um problema ou defeito do meu novo romance. Não, era ainda pior: ela estava tirando uma conclusão sobre mim, sobre meu caráter e minha maneira de ser, sobre o caráter e a maneira de ser do autor do romance, quer dizer, a partir daquele fragmento lido. E ela, aliás, era (ainda é) minha companheira, a primeira leitora dos meus manuscritos (é minha esposa, mas ultimamente estou muito confuso sobre a palavra que devo usar para não ser acusado de apologista do patriarcado).

Dei um gole na minha cerveja, peguei as trezentas folhas encadernadas e li, dentro de minha cabeça, o fragmento, que, na verdade, de tanto corrigir, eu sabia de cor. Ela então voltou a falar a mesma coisa, só que com argumentos diferentes, indo mais longe na interpretação, até o ponto de eu ficar paranoico.

– Não – repeti –, não é nada disso.

Ela pegou meu copo de cerveja, deu um gole longo, como se para ganhar confiança, e disse:

– Você não sabe o que escreve.

– Como!? – perguntei escandalizado.

– É isso – ela falou.

– O quê!?

– Você não sabe o que escreve, você não sabe como escreve nem por que escreve o que escreve.

2.
Novembro de 2013.

Eu estava escrevendo a sexta ou sétima versão do meu romance anterior quando decidi apagar a presença de um poeta mexicano nele. A leitura de um poema desse poeta tinha inspirado a criação do protagonista do livro: um velho rabugento, solitário, cínico, bêbado, um artista frustrado que tinha virado vendedor de tacos. Naquela sexta ou sétima versão não só aparecia o nome do poeta, o narrador inclusive copiava o poema em questão no caderno onde escrevia o romance.

Um dia me pareceu que aquilo era explícito demais, que a literatura deve ser feita de vazios, de elipses, de segredos, de mistérios. Apaguei o nome do poeta. Apaguei o poema. Mas deixei umas pistas de sua presença no romance: a descrição da capa do livro onde apareceu originalmente esse poema, o lugar de nascimento do poeta, a data aproximada de sua morte, que ocorreu enquanto eu escrevia o romance. Gostei da ideia de que o livro tivesse uma adivinhança para os entendidos, para os conhecedores da poesia mexicana do século vinte.

E, lógico, depois esqueci do assunto.

3.
Dezembro de 2016.

Fui passar férias no Brasil. Na casa de minha sogra em Campinas me esperavam cinco caixas cheias de livros: as sobras de minha biblioteca brasileira. Eu tinha prometido esvaziar essas caixas, trazer para Barcelona os livros que realmente queria manter e doar o resto para a Unicamp. Entre as caixas, achei uma que eu tinha esquecido e que poderíamos chamar de "arquivo do ego". Exemplares das distintas traduções de meus romances. Revistas e jornais onde publiquei contos, crônicas, ensaios, críticas, colunas. Programas de festivais e feiras do livro que tinha participado.

Comecei a separar os materiais, me obrigando, finalmente, a tomar a decisão, por exemplo, de me desfazer dos exemplares da Festa no covil em húngaro, já que os muito-hipotéticos amigos húngaros que poderia presentear com esses livros continuavam sem passar da hipótese à realidade. E, de repente, entre esse monte de lixo tão apreciado pela minha egomania, surgiu a edição do segundo trimestre de 1999 da revista La Palabra y El Hombre, da Universidad Veracruzana. Nessa revista, que eu conservava com especial carinho, publiquei um texto pela primeira vez na minha vida. Localizei o conto que tinha escrito e reescrito até a exaustão em 1998. Lembrei o fato desprezível de que eu tinha apagado a dedicatória original do conto, depois de brigar com a namorada daquela época. Sentei rodeado das caixas e dos livros e li de novo, depois de tantos anos, o conto.

Era muito mais barato que o psicanalista, era de graça, se você estava disposto a aguardar dezoito anos para entender o que você tinha escrito. Nessas sete páginas estavam recompiladas e abreviadas, metaforizadas, as verdades mais profundas de minha infância, aquelas que, durante anos, eu não pude ou não quis reconhecer.

Minha companheira me encontrou com a revista ainda nas mãos e o olhar perdido na parede.

– Que é que foi? – me perguntou.

– Nada.

– Que capa feia.

– Como?

– Da revista.

Olhei a capa: nela, o trabalho de um ilustrador nacionalista que parecia adorar os deuses astecas, mas era um péssimo desenhista.

– Horrível – falei.

4.
Fevereiro de 2017.

Um leitor mexicano me marcou num tweet:

"Rubén Bonifaz Nuño: os tacos são feitos com carne tão fresca que ainda late".

Bingo!

Dois anos e quatro meses depois da publicação de Te vendo um cachorro, alguém tinha resolvido a adivinhança. Rubén Bonifaz Nuño, nascido em Córdoba, Veracruz, e que morreu em 31 de janeiro de 2013, era o poeta apagado do romance. O livro que aparece numa das cenas do romance é Los demonios y los días, que tem na capa, uma capa linda, aliás, o desenho de três cachorros, dois deles brigando e o outro latindo.

Escrevi uma mensagem privada para o leitor:

– Legal! Você resolveu a charada!

– Não entendi – respondeu.

Expliquei para ele que nas páginas 89 e 90 do livro (da edição em espanhol) apaguei a presença de Rubén Bonifaz Nuño, mas que deixei umas pistas e que ele tinha descoberto.

– Não, eu não descobri – escreveu.

– Mas você mencionou o poeta no tweet.

– Porque fala dos tacos de cachorro, igual o romance.

Nesse momento percebi que eu não tinha lido esse verso de Rubén Bonifaz Nuño antes, que de uma maneira assustadoramente misteriosa havia uma conexão entre o enredo de meu romance (a lenda urbana dos tacos de cachorro) e a poesia do poeta apagado.

– Você conhecia esse verso? – me perguntou.

– Sim, claro – menti.

5.

Escritores que não sabem o que escrevem.

Leitores que não sabem o que leem.

O mistério e a beleza secreta da literatura.

Revisão de texto: Andreia Moroni

* * * * *

Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal. 
Twitter

Juan Pablo Villalobos

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog