Ms. Ashmole 399, f. 19r, Bodleian Library, Universidade de Oxford.
Um livro complexo, mas compacto, em que quatro letras se combinam em frases variadas para formar um código. É comum usar a metáfora do livro para explicar a genética dos seres vivos, em especial dos seres humanos – o texto com as instruções para que um indivíduo cresça e se torne o que deve ser. Embora cada criatura constitua um livro singular, a obra é coletiva e ancestral, uma rede de registros que, mesclando-se, vão sendo copiados e recopiados ao longo dos tempos.
Borges, em um ensaio sobre Whitman, cita o poema “Full of life, now” e sugere que o leitor de seus versos, deslocado por uma profecia para o lugar do poeta, encontra a sentença que o faz ser Walt Whitman. “A ti, que não nasceste, procuro./ Estás lendo-me. Agora o invisível sou eu”.[i] Algo parecido, creio, se passa com as cifras genéticas. Aqui, o leitor é criado pela leitura, o indivíduo se torna o próprio livro à medida que o lê – até que uma nova versão se transmita. De vez em quando, a natureza erra, uma letra é duplicada ou trocada. Mas uma condição se mantém: o leitor não pode alterar o que está escrito.
Acontece, sabemos, que leitores nem sempre respeitam as regras. Basta pensar nos que frequentam as bibliotecas. Tomam um livro emprestado, rabiscam e sublinham o texto, enchem as margens de notas. É um modo de participar da história sem mexer nas palavras. É também um artifício para interferir na leitura do próximo, induzindo-lhe o olhar – assim se propaga um ponto de vista. Quem herda um livro herda também as marcas que ficaram em suas páginas. Um livro é todas as leituras que se fazem dele.
Se a escrita dos genes tivesse a lógica dos livros, seria preciso descobrir, em algum cromossomo subterrâneo, um livro paralelo ao das letras do DNA – escrito na periferia de suas linhas. Uma espécie de marginalia, com glosas e palpites sobre o texto principal. É aí, nesse apêndice não catalogado, que a experiência de um leitor se conecta à de seus sucessores. Uma seta pode mudar a ideia de fome, um círculo amplia a atração pelo mar. O medo dos crepúsculos, o fascínio por uma cor, a insistência em um raciocínio – qualquer traço pode vir de uma memória atávica, a reação guardada por um ascendente longínquo. Imagino como, com base em um apontamento antigo, sobreviveria o mesmo tipo de nostalgia. Imagino os que, descontentes com o que lhes foi legado, deixariam uma senha de autodestruição – seus herdeiros se incendiariam.
À margem do livro, contudo, nada é estático. Uma nota pode contrariar ou anular a anterior, gerar controvérsias ao infinito. Como nas páginas do Talmude, as lições avançam em espiral e se acumulam. No calor de alguma geração cansada, os escólios ameaçam devorar o miolo do livro. O entorno o torna ilegível. Talvez seja esse o momento em que a história acaba. Talvez seja esse o momento em que, desgarrando-se de si mesmo, de sua fórmula primitiva, o indivíduo se converte em uma citação, um ponto de vista sobre a espécie que foi. Olhando o passado, todos os fósseis e culturas soterradas, não é isso, afinal, o que somos, um comentário aos nossos ancestrais?
[i] A tradução aqui é de Josely Vianna Baptista (está em “Nota sobre Walt Whitman”, do livro Discussão. Companhia das Letras, 2008).