Nota sobre a escrita dos genes

29/10/2021

Ms. Ashmole 399, f. 19r, Bodleian Library, Universidade de Oxford.

 

Um livro complexo, mas compacto, em que quatro letras se combinam em frases variadas para formar um código. É comum usar a metáfora do livro para explicar a genética dos seres vivos, em especial dos seres humanos – o texto com as instruções para que um indivíduo cresça e se torne o que deve ser. Embora cada criatura constitua um livro singular, a obra é coletiva e ancestral, uma rede de registros que, mesclando-se, vão sendo copiados e recopiados ao longo dos tempos.

Borges, em um ensaio sobre Whitman, cita o poema “Full of life, now” e sugere que o leitor de seus versos, deslocado por uma profecia para o lugar do poeta, encontra a sentença que o faz ser Walt Whitman. “A ti, que não nasceste, procuro./ Estás lendo-me. Agora o invisível sou eu”.[i] Algo parecido, creio, se passa com as cifras genéticas. Aqui, o leitor é criado pela leitura, o indivíduo se torna o próprio livro à medida que o lê – até que uma nova versão se transmita. De vez em quando, a natureza erra, uma letra é duplicada ou trocada. Mas uma condição se mantém: o leitor não pode alterar o que está escrito.

Acontece, sabemos, que leitores nem sempre respeitam as regras. Basta pensar nos que frequentam as bibliotecas. Tomam um livro emprestado, rabiscam e sublinham o texto, enchem as margens de notas. É um modo de participar da história sem mexer nas palavras. É também um artifício para interferir na leitura do próximo, induzindo-lhe o olhar – assim se propaga um ponto de vista.  Quem herda um livro herda também as marcas que ficaram em suas páginas. Um livro é todas as leituras que se fazem dele.

Se a escrita dos genes tivesse a lógica dos livros, seria preciso descobrir, em algum cromossomo subterrâneo, um livro paralelo ao das letras do DNA – escrito na periferia de suas linhas. Uma espécie de marginalia, com glosas e palpites sobre o texto principal. É aí, nesse apêndice não catalogado, que a experiência de um leitor se conecta à de seus sucessores. Uma seta pode mudar a ideia de fome, um círculo amplia a atração pelo mar. O medo dos crepúsculos, o fascínio por uma cor, a insistência em um raciocínio – qualquer traço pode vir de uma memória atávica, a reação guardada por um ascendente longínquo. Imagino como, com base em um apontamento antigo, sobreviveria o mesmo tipo de nostalgia. Imagino os que, descontentes com o que lhes foi legado, deixariam uma senha de autodestruição – seus herdeiros se incendiariam.

À margem do livro, contudo, nada é estático. Uma nota pode contrariar ou anular a anterior, gerar controvérsias ao infinito. Como nas páginas do Talmude, as lições avançam em espiral e se acumulam. No calor de alguma geração cansada, os escólios ameaçam devorar o miolo do livro. O entorno o torna ilegível. Talvez seja esse o momento em que a história acaba. Talvez seja esse o momento em que, desgarrando-se de si mesmo, de sua fórmula primitiva, o indivíduo se converte em uma citação, um ponto de vista sobre a espécie que foi. Olhando o passado, todos os fósseis e culturas soterradas, não é isso, afinal, o que somos, um comentário aos nossos ancestrais?

 

[i] A tradução aqui é de Josely Vianna Baptista (está em “Nota sobre Walt Whitman”, do livro Discussão. Companhia das Letras, 2008).

Marcílio França Castro

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog