Nova York de verdade

30/10/2017

Tenho três tipos de vergonha em admitir que fui a Nova York, pela primeira vez na vida, no início deste mês.

A primeira vergonha é a culpa pequeno-burguesa de, nessa situação, nessa crise, no meio do semestre, no meio de uma mudança, com tese pra entregar, olha quanto tá o dólar, sujeito inventa de passar uma semana em Nova York. Não quero me justificar, mas: não fui eu que inventei a viagem e tinha “circunstâncias especiais”.

A segunda vergonha tem a ver com estas “circunstâncias especiais”, as que acabaram transformando a viagem em catástrofe. Mas essa é outra história.

A terceira vergonha tem a ver com a suposição disseminada – e justa – de que tradutores são pessoas que viveram algum tempo na língua e na cultura da qual traduzem. É uma suposição justa porque é justo considerar que o tradutor de inglês teve farta experiência de primeira mão com o inglês e a cultura em torno do inglês antes de ser tradutor. Vergonhosamente, admito que não foi meu caso. O mais próximo que eu tinha de contato direto com anglofonia foram aulas com um professor birminghaniano durante uns meses de preparação para o Cambridge Advanced Exam. Comecei a ser tradutor de inglês sem ter botado o pé em um país angloparlante.

Tal como você, fiz meus cursinhos de inglês e, tal como você, li, ouvi e assisti muita coisa em inglês. (Bom, talvez tenha lido, ouvido e assistido mais do que você, mas não vejo isso como adendo sadio ao currículo.) E aprendi a escrever um português passável. Virei tradutor. Só mais tarde fui bater pé em Londres e na Califórnia. Nova York, essa coisa tão central a tudo que eu e você lemos, ouvimos e assistimos, seguia abstrata, uma aproximação, imaginada.

Se consome boa dose de cultura pop, você já ouviu falar das farpas que os nova-iorquinos trocam com Nova Jersey, da gente doida falando sozinha na rua, do tamanho das fatias de pizza e da importância de comer pizza sem talheres. Que os tiras e os taxistas estão sempre de cara amarrada, que todo wallstreetiano tem cabelo lambido, que operários italianões desligam a britadeira pra assobiar às meninas e que toda quadra tem um hassídico caminhando aparentemente apenas por caminhar, os braços para trás, matutando problemas profundos da existência. E as piadas que se faz com esse checklist de novaiorquismos.

Agora posso dizer em primeira mão: é tudo verdade.

Você cresce lendo Homem-Aranha, sabendo que Peter Parker morava no Queens, que o Clarim Diário ficava na 39 com a Segunda Avenida e que haveria caixas d’água com chapeuzinho cônico em cima de quase todo prédio de Manhattan. E aí você percorre a distância real entre o Queens e o meio de Manhattan – a ponte, o engarrafamento, a mudança brutal de cenário –, vê as caixas d’água com chapeuzinho cônico reais pela janela do hotel, conhece vários prédios reais que podiam ter um Clarim Diário e aí…

Pois aí você descobre que a experiência ali, in loco, real, já aconteceu na sua cabeça. Você já conhece aquilo – mesmo que desenhado – lendo Homem-Aranha. Nova York, indiretamente, já está em você. É tudo verdade e você já conhece essa verdade.

É claro que todo esse consumo indireto da cidade podia ter me botado lentes que fizeram eu ver por lá apenas o que eu queria ver. Mas a minha lente, garanto, era do ceticismo. Se a verossimilhança da teledramaturgia brasileira é tão ruim para representar minha vida de brasileiro, eu não tinha como confiar que aqueles gibis, livros, filmes e seriados passados em Nova York transmitiriam uma experiência fidedigna de Nova York. Ainda mais porque, tal como os apartamentos do Leblon são cenários do Projac, mais de metade das Nova Yorks filmadas são estúdios em Vancouver ou Burbank. Né?

Aí que eu me enganei. É tudo verdade. Os personagens do Woody Allen andando pelas ruas de Manhattan são você andando por Manhattan. Vários Kramer, do Seinfeld, vão esbarrar com você. Os Suburbans, aqueles SUVs que parecem touros, de vidro opaco, são tão presentes e misteriosos quanto no Mr. Robot. E eu vi a skyline desenhada pelo John Romita Jr., as empenas desenhadas pelo Howard Chaykin, os velhinhos desenhados pelo Ben Katchor, as escadarias desenhadas pelo Will Eisner ali, tudo tridimensional e palpável. Frank Miller dizia que Metrópolis é Nova York de dia e Gotham City é Nova York de noite. Vi as duas Novas Yorks com outro nome na de verdade.

Quer dizer então que quem consumiu a Nova York de segunda mão nem precisa conferir em primeira? Que nada. Não confie em nada do que eu disse e dê um jeito de ir lá. E peça uma fatia-monstro de pizza enquanto tenta avistar o Homem-Aranha.

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Érico Assis é jornalista, tradutor e doutorando. Mora em Florianópolis e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Também escreve em seu site pessoal, A Pilha.

 

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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