Num palco ou num circo

02/09/2020

Foto por Nathan Dumlao

 

Outro dia me pediram para gravar um vídeo lendo um poema: não esqueça de dizer seu nome antes. Na sem-gracice de ter de falar meu nome para a tela, fiquei pensando nesses tempos de lives e avatares, em que estamos constantemente repetindo nossos nomes e criando personagens para eles. Se ao menos pudesse ser alguma espécie de jogo com o nome, como nos poemas que trazem o nome próprio do poeta... No clássico dos clássicos, “Poema de sete faces”, publicado em Alguma poesiaDrummond diz:

 

                        “Vai, Carlos, ser gauche na vida”

 

O tom derrisório deste autorretrato desconcerta o leitor, mas acho que o gesto de dizer o nome dentro do poema é o que mais provoca aqui. Apresentar a assinatura em terceira pessoa, sendo chamado por outro, e transformar o mal estar em questão enunciativa.

Penso em outro poema com tom derrisório, não sobre chegadas, mas sobre partidas: “Epitáfio”, de Sebastião Uchoa Leite.

 

Aqui jaz
para o seu deleite
sebastião
uchoa
leite

(Antilogia. Achiame, 1979)

 

 

Neste caminho paronomástico, Angélica Freitas faz, em Um útero é do tamanho de um punho, um poema-dístico em que expõe o cruel controle sobre o corpo feminino (da própria poeta), “Mulher de respeito”:

 

diz-me com quem te deitas
angélica freitas

 

Me lembrei também de um poema da Adília Lopes, mas ali o nome citado não é de batismo e, sim, o nome usado para assinar os livros:

 

6.
Nasci em Portugal
não me chamo
Adília

7.
Sou uma personagem de ficção científica
escrevo para me casar

(Clube da poetisa morta. Black Sun, 1997)

 

Ao dizer (em primeira pessoa) que a assinatura é de uma personagem que escreve no lugar da autora, ela traz mais elementos para a discussão e adensa o jogo entre vida e escrita. No poema “Autobiografia e anonimato”, Adília Lopes desdobra as possibilidades de usos do nome. Ele é um pouco extenso, o leitor me perdoe por testar sua paciência (já estamos no fim):

 

1.
Um escritor de romances escabrosos
(o seu tema predilecto foi a relação incestuosa
entre três irmãos)
decidiu permanecer anónimo
não por ter vergonha de assinar romances escabrosos
mas para tornar ainda mais escabrosos os romances
assim os leitores suspeitavam que os romances eram autobiográficos
e se ele os assinasse com o seu nome
os leitores ficavam a saber que ele era um filho único
é claro que como filho único
vivia fascinado pelo incesto entre dois irmãos
que inspirou Chateaubriand
(e não podia perceber o aforismo de Joyce
é tão fácil esquecer um irmão como um guarda-chuva)
mas mesmo que se considere como eu
que a leitura de um livro pode ser tão importante
na vida de uma pessoa
como ter um irmão
dois irmãos não são três irmãos

2.
Um poeta assinava os poemas com o seu nome
mas um romance por ser autobiográfico
assinou com um pseudónimo pouco banal
contava no romance (e foi isto que o levou
a decidir-se por um pseudónimo)
que comia ao pequeno-almoço
alheiras às rodelas com salada de tomate
no supermercado quando pediu à empregada
da charcutaria às 8h30 da manhã duas alheiras
a empregada perguntou-lhe se ele tinha escrito
As singularidades de Carolina (era o nome do romance)
ele ficou tão embaraçado que pediu à mãe
para ser ela a comprar as alheiras e os tomates
mas quando a mãe chegava ao lugar da hortaliça
com um saco de plástico cheio de alheiras
o indiano do lugar perguntava-lhe logo
se ela tinha escrito As singularidades de Carolina.

3.
Um terceiro escritor escreveu uma autobiografia
em que se limitou a contar
que ao pequeno almoço bebia café com leite
e comia pão com geleia de laranja
assinou a autobiografia com o seu nome
e nenhuma empregada de supermercado
o importunou
mas depois de ter o livro publicado
sempre que bebia café com leite e comia pão com geleia de laranja
ao pequeno almoço
sentia-se mal como se estivesse num palco ou num circo
a ter de beber café com leite e a ter de comer pão com geleia de laranja
diante de olhos que abolem a privacidade
e por se sentir assim passou a comer flocos de aveia

(Os 5 livros de versos que salvaram o tio. Edição da autora, 1991)

 

Este poema (de 1991) diz bastante coisa sobre esses tempos em que se multiplicam posts com fotos de café da manhã (“pequeno almoço”). Escrever o nome próprio (ou escrever em primeira pessoa) não é necessariamente em poesia um exercício egocêntrico, ao contrário, pode ser uma forma de inventar uma experiência subjetiva ao transformar a assinatura em uma ficção (que também somos). Ainda que seja preciso, depois de escrever a vida, trocar de café da manhã.

 

***

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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