O Cara do Norte

Por Carol Bensimon
Dá pra dizer que eu conheci esse cara através de uma lesma chamada banana slug. Ele devia estar com insônia um dia, lá sozinho numa propriedade no norte da Califórnia, pegando uma rádio distante numa caixinha de som meio fodida enquanto os pinheiros descansavam em pé. Ele tinha que levantar junto com o sol, mas não conseguia dormir, então ligou o gerador (não havia luz na propriedade) e ficou olhando uns sites. Como ele andava pensando naquelas lesmas que parecem bananas -- elas meio que estavam por tudo, empenhadas em decompor folhas e restos de pequenos animais no grande tapete que era a floresta -- ele acabou topando com as fotografias de um cara chamado Hans. Hans morava umas três horas mais ao sul, em Albion. Ele também tinha fotografado a lesma amarela.
Uma mensagem minha, provavelmente cheia de erros de inglês, estava no mural do site de Hans. Ele era algum tipo de artista que aparentemente ganhara algum dinheiro, embora não estivesse claro se isso tinha relação com sua arte ou se ele era apenas um herdeiro com pendores criativos. O fato é que ele comprara uns sei lá quantos hectares de terra onde antigamente havia um comunidade hippie chamada Little Creek Farm. E ele estava a fim de deixar aquilo tudo tinindo de novo, as cabanas com formatos estranhos que se erguiam respeitosamente no meio do mato. Dizia que aquele seria um lugar para artistas. Eu queria escrever meu próximo livro lá.
Hans não me deixou ficar em Little Creek Farm, mas eu acabei conhecendo o Cara do Norte -- tudo por causa do banana slug. O Cara do Norte amava o Brasil. Quando fui para a Califórnia, a gente se encontrou em uma cidade chamada Arcata. Tanto eu quando ele dirigíamos carros velhos de cores improváveis. Demos um tempo em Arcata e depois ele disse para eu desligar o GPS e seguir o carro dele. Andamos por um bom tempo entre as montanhas. Eu jamais conseguiria chegar àquele lugar de novo, sabia disso. Acho que em vinte minutos paramos na frente de uma cerca de madeira sem vãos, exatamente igual a de todas as propriedades dos arredores. O Cara do Norte colocou o carro para dentro e sinalizou para que eu deixasse o meu ali fora. Era um trambolho que eu tinha alugado de um amigo. Eu acabei me afeiçoando a ele. Uns meses depois, meu amigo vendeu o carro para uns mariachis de Los Angeles.
Difícil dizer quantos pés de maconha havia lá dentro. 500? 600? Cada um deles era mais alto que eu. Ele me mostrou uma tirolesa que usava para ir de um lugar pro outro. Eu não quis usar a tirolesa. Havia umas pedras empilhadas em uma clareira, num equilíbrio meio mágico. Parece que aquilo era algum tipo de prática zen. Nós jantamos comida pronta de um supermercado orgânico enquanto o sol se punha sobre as plantas. Ele disse que tinha uma arma. Precisava ter. Lembro de mostrar pra ele uma banda americana que eu gostava e, coincidentemente, a primeira faixa do disco tinha o nome da cidade natal dele, um lugar não muito importante lá do Meio Oeste. Ele me deu um monte de camarõezinhos das suas plantas em um velho pote de geleia.
Isso não é ficção. Isso é o que acontece no meio do mato no norte da Califórnia.
O Cara do Norte me contou duas histórias que eu guardei. Ele disse, andando pelas ruas de Arcata, que alguém uma vez tinha feito um experimento com minhocas da Austrália. Levaram as minhocas para outro continente e, monitorando as minhocas, descobriram que elas entravam debaixo da terra e tentavam encontrar o caminho para a Austrália. E elas estavam certas. Estavam indo na direção da Austrália mesmo, embora não soubessem que havia todo um oceano para cruzar. Ele chamou aquilo de “earthworm antenna”. O instinto de encontrar o caminho de casa. O Cara do Norte achava que as pessoas tinham uma coisa daquelas também.
A outra história era sobre redwoods, as sequoias avermelhadas da região. Ele disse que uma árvore nunca tocava na outra; que elas respeitavam suas irmãs, era só eu reparar, os galhos nunca se tocavam, o que devia servir de lição para todos nós, etc. Por aqueles meses, eu fiquei cuidando isso cada vez que estava na floresta e olhava para cima. Parecia fazer sentido mesmo. Mas nunca achei sequer uma informação sobre o GPS interno das minhocas ou o imenso respeito das redwoods pelas suas iguais. Gostei das histórias mesmo assim. No fim da viagem, dei aquele pote de geleia quase cheio para uma menina desconhecida em um estacionamento de San Francisco. Era noite de Halloween e foi bonita a cara que ela fez, como se houvesse algo de milagroso naquele meu gesto.
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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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