O Pantanal viu o nosso futuro

14/10/2020

Foto por Juliana Amorim

 

No começo de outubro, o jornal The New York Times publicou uma série espetacular de artigos com um título assustador: “The Amazon has seen our future”, ou “a Amazônia viu o nosso futuro”. Cientistas, antropólogos, jornalistas e outros especialistas foram convidados a discorrer sobre a proteção da floresta (ou falta dela) em tempos de Bolsonaro e crise climática. A conclusão geral é que o que quer que aconteça na selva brasileira determinará, em última análise, os rumos da habitabilidade deste planeta.

A situação da Amazônia é de fato motivo para alarme; temos indícios de que a combinação entre desmatamento e alterações no clima esteja rapidamente empurrando a floresta rumo a um ponto de virada, no qual há a substituição da exuberante mata tropical por um tipo de cerrado empobrecido, tal qual previsto por Marcos Oyama e Carlos Nobre em 2003. Nesse cenário, o bioma deixa de ser um ralo para o carbono que lançamos na atmosfera para se tornar uma fonte de emissões. Em algumas regiões isso já pode estar ocorrendo. A chamada “savanização” da Amazônia está tão presente no Zeitgeist que começa a surgir um bizarro movimento identitário entre ambientalistas defensores do cerrado para não usar a palavra “savanização”, expressão pejorativa, preconceito contra as savanas, essas injustiçadas (com a autoridade de quem cresceu em Brasília, declaro que seguirei usando o termo, me processem).

Por fundamental que seja a floresta amazônica, porém, há um outro bioma sul-americano que está vendo nosso futuro bem antes dela. No momento em que escrevo, mais de 27% do Pantanal já foram consumidos pela pior temporada de queimadas já registrada na história e na memória dos locais. Em nove meses e 12 dias de 2020, o número de focos de calor era 63% maior do que em 12 meses do pior ano da série histórica, 2005. A atual estação, na qual incêndios criminosos iniciados em sua maioria por fazendeiros se combinou com uma seca extrema turbinada pela mudança climática, despertou a consciência aterradora de que não há nada nas leis da física que impeça o Pantanal de queimar até o fim em algum momento dos próximos anos.

A ideia de perder um bioma inteiro, ou vê-lo transformado em outra coisa, irreconhecível, parece distante. Ainda mais quando o algoz é o fogo e a vítima, uma planície alagável – a maior do planeta. Mas a atmosfera, sabemos, não está nem aí para esse tipo de ironia. Que o digam os recifes de coral da Grande Barreira australiana, que vêm sofrendo epidemias sucessivas de branqueamento causadas por ondas de calor... marinhas. Foram cinco eventos desde 1988, um deles este ano. O mais forte, em 2016, matou 20% dos corais de uma estrutura que faz parte não apenas da paisagem, mas da identidade da Austrália, e que as pessoas achavam que fosse estar sempre por ali.

O destino dos corais australianos está profetizado desde pelo menos 2007. Naquele ano, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, escreveu em seu grande relatório sobre a crise do clima que os recifes de coral seriam uma das primeiras grandes vítimas do aquecimento da Terra, e que mortalidade em massa na Grande Barreira poderia acontecer por volta de 2030. Aconteceu 14 anos antes. Os australianos começam a enxergar seus icônicos recifes como aquele parente idoso que, mais hora, menos hora, não estará mais conosco.

O Pantanal não figura ainda nos relatórios do IPCC como objeto de preocupação, mas isso se deve mais a lacunas no nosso conhecimento do que a algum corpo fechado do bioma contra as mandingas do clima. A seca bizarra que se abateu sobre a região este ano e reduziu as chuvas no auge do verão a metade do normal tem as impressões digitais do aquecimento global. Cientistas com quem conversei acham muito provável que ela tenha relação com o aquecimento do Atlântico, que está causando em 2020 uma das temporadas de furacões mais ativas da história no Caribe. Isso reduz o volume dos “rios voadores”, correntes de umidade exportadas pela Amazônia, que neste ano entraram menos no Pantanal, segundo o climatologista José Marengo, do Cemaden (Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). Até agora, o recordista em incêndios no Pantanal havia sido 2005, outro ano de Atlântico tropical muito quente, famoso pelos furacões Katrina e Rita.

Isso tudo está acontecendo com uma elevação média da temperatura da Terra em 1,1oC nos últimos 150 anos. Nas próximas décadas chegaremos, com muita sorte e esforço da humanidade, ao dobro disso. Para o Brasil central, que inclui o Pantanal mato-grossense, modelos climáticos produzidos pelo Inpe apontam um aquecimento de até 4oC no meio do século no pior cenário. Não há tuiuiú que resista.

Mas a seca é apenas metade da explicação para o holocausto pantaneiro. A outra metade é o fósforo. O Pantanal, explica José Marengo, já viu secas monstruosas antes, nos anos 1960 e 1970, mas não teve queimadas nessa dimensão porque não havia as mudanças no uso da terra que há hoje.

O bioma é composto de extensos campos naturais onde a pecuária existe há séculos em equilíbrio com o ecossistema. Em alguma medida, o boi no Pantanal tem até mesmo o efeito de reduzir o risco de fogo, ao comer o capim e deixar menos massa vegetal para queimar na seca. Ocorre que, nas últimas décadas, as matas das partes não alagáveis do Pantanal, as chamadas cordilheiras, vêm sendo derrubadas pelos pecuaristas para expandir as pastagens para além dos campos naturais. Entre 1999 e 2018 a cobertura vegetal caiu 10% no Pantanal e as pastagens exóticas tiveram expansão de 64%. Análises do Instituto Centro de Vida e uma investigação da Polícia Federal apontam fazendeiros como os principais responsáveis por iniciar os incêndios – em Mato Grosso, mais de 80% das queimadas ocorreram no período em que elas são proibidas, na estação seca. Se a prática continuar, num cenário de agravamento da mudança do clima, 2020 terá sido apenas o aperitivo do que aguarda o Pantanal.

E aqui esbarramos num problema cognitivo trazido pelo novo normal climático. Embora o desmatamento no Pantanal – e em qualquer outro lugar – seja uma prática condenável e que deve ser banida, há pessoas que usam fogo há séculos como ferramenta de manejo agropecuário. Elas não estão equipadas mentalmente para entender que a realidade mudou e que aquilo que seus bisavós faziam sem maiores prejuízos hoje traz risco até para elas próprias. O cérebro humano evoluiu para entender a noção de impermanência de seres vivos, de outros humanos, até de nós mesmos. Mas não de lugares.

A crença nesse estado estacionário das coisas, alimentada por ganância de produtores, má-fé de “gurus” do agronegócio e torpeza de governantes, pode ser a assinatura que faltava na sentença de morte do Pantanal e de sua fauna espetacular. O obituário de um bioma inteiro é  algo que ninguém espera escrever.

 

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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