O centenário de Manoel de Barros

19/12/2016

O poeta matogrossense Manoel de Barros completaria 100 anos em 19 de dezembro. No final de 2015, a Alfaguara deu início à publicação da obra do poeta com a antologia Meu quintal é maior do que o mundo, que percorre todas as fases do longevo artista. Ainda no primeiro semestre de 2016, para comemorar o ano do centenário do poeta, o selo devolveu às livrarias clássicos em novas edições com curadoria de Italo Moriconi, que também assina o prefácio dos dois primeiros títulos de Manoel de Barros, Poemas concebidos sem pecado (1937) + Face imóvel (1942), unificados em um único volume. Com prefácio inédito de Luiz Ruffato, Arranjos para assobio (1982) também ganhou novo tratamento editorial.

Em maio, foi a vez de O livro das ignorãnças (1993) ganhar nova edição com texto de introdução assinado por Valter Hugo Mãe. Já em setembro, Menino do mato (2010), um dos últimos livros escritos pelo poeta, teve uma edição especial em formato bolso. Em outubro, coroando os lançamentos do ano, retornou às prateleiras das livrarias o Livro sobre nada (1996), um dos mais emblemáticos de sua obra. As novas edições incluem fotos inéditas, manuscritos e cartas de, entre outros, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Millôr Fernandes. Para 2017, está prevista a reedição de O guardador de águas (1989) ainda no primeiro semestre. 

Italo sintetiza no texto que abre as reedições a singularidade da obra do poeta: “A poesia de Manoel de Barros começa por onde termina: sob o ponto de vista do menino do mato, maravilhado, em sua convivência de vida toda, de corpo e alma, com palavras, pessoas e o mundo ao seu redor.”

Manoel de Barros (1916-2014) nasceu em Cuiabá, mas foi criado numa fazenda próxima a Corumbá. Começou sua educação num internato em Campo Grande e, aos doze anos, foi matriculado no Colégio São José, no Rio de Janeiro — cidade onde viveu por trinta anos. Em 1937 publicou seu primeiro livro de poesia, Poemas concebidos sem pecado. Viajou pela Europa, estudou cinema e arte em Nova York. Em 1958, mudou-se com a mulher Stella e os três filhos para o Pantanal. Viveu um período de intensos e rústicos trabalhos para formar a fazenda; por isso, durante quase dez anos, pouco se dedicou à literatura. Nos anos 1960, vivendo em Campo Grande, foi premiado pelo livro Compêndio para uso dos pássaros e, nos anos 1970, voltou à cena literária com Matéria de poesia. No início dos anos 1990, sua obra poética foi reunida no volume Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). A partir de então, conquistou vários prêmios importantes como o APCA, o Jabuti e o Prêmio Nestlé. Nos anos 2000, sua obra foi publicada em Portugal, recebeu prêmios internacionais e foi traduzida para vários idiomas.

Para conhecer mais sobre Manoel de Barros, publicamos a seguir o prefácio escrito por Italo Moriconi para a nova edição de Poemas concebidos sem pecado + Face imóvel e uma galeria de fotos do poeta selecionadas para as novas edições de sua obra.

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Por Italo Moriconi

A poesia de Manoel de Barros começa por onde termina: sob o ponto de vista do menino do mato, maravilhado, em sua convivência de vida toda, de corpo e alma, com palavras, pessoas e o mundo ao seu redor. Mundo que afeta e é afetado (recriado) pelo olhar da criança, pela dicção que esta engendra em desabrida liberdade criadora frente à língua. É a linguagem contra a língua. Linguagem-invenção que subverte os limites do dizer, produzindo figurações inusitadas, de originalidade sempre surpreendente. Singularidade sem concessões da poética de Manoel de Barros.

Desde os Poemas concebidos sem pecado, de 1937, até o livro Menino do mato, publicado em 2010, quando já estava com 94 anos, Manoel é munido e movido por esse maravilhamento inquisitivo e inventivo que constrói — em poesia/prosa — suas narrativas do mundo. É uma poesia de frases que narram, antes de tudo, os embates do próprio olhar, fazendo da autorreflexão um de seus traços mais distintivos na alta literatura brasileira. Olho para meu olhar que olha o mundo. Meu olhar capta os detalhes esquecidos do mundo.

Esse movimento autorreflexivo do olhar transforma-se num tecido de visões nascidas da observação do micrológico, do marginal, do residual, do pequeno, do mais-pobre. Lixo que é luxo. Como afirmou a professora Berta Waldman, da Universidade de São Paulo, a poesia de Manoel de Barros se elabora nas sobras da sociedade capitalista. Perscruta o entulho. Percebe num átimo de intuição o até então despercebido.

Ao recortar, resgatar, em suma salvar, aspectos menos notados do real (“pré-coisas”, dirá depois o poeta), a poesia de Manoel de Barros cria uma hiper-realidade, uma realidade virtual, mas não no sentido glamouroso ou neon da expressão. Uma hiper-realidade na linguagem. O apelo contemporâneo da poesia de Barros talvez esteja mais na capacidade de exteriorizar o virtual das palavras do que no que muitos de seus comentadores consideram, não sem alguma razão, seu lado ecológico. Trata-se de ecologia social, escavando as falas de personagens do mato, “bugres”, como por vezes também se autodenomina o poeta.

Hiper-realidade, ecologia, estética do resto. Há, na verdade, hibridismo, mútua fecundação entre natureza e hiper-realidade. Poemas concebidos sem pecado já apresenta essa linha: o casamento entre memória da infância pantaneira e vivência intensa das palavras em estado de pré-dicionário (contrastando com as “palavras em estado de dicionário” de Carlos Drummond de Andrade). Pré-coisas, pré-dicionário. Do aquém da pré-palavra ao além da neo-palavra. O além do aquém é o hiper-real da linguagem. Totalmente alheio a esta poesia é o sublime do empíreo, do celestial. Trata-se de uma poesia aferrada à terra, ao chão, ao corpo. Quando voa, é voo de animal passarinho. Se “espírito” é uma palavra para imaterial, aqui o imaterial está no próprio material, no desdobramento infinito do material.

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Vê-se que em seu primeiro livro (Poemas concebidos sem pecado), o poeta apresentava-se ao público já pronto, senhor das artes do poetar escrito, num contexto de linguagem também pronto. Era o legado do modernismo dos anos 1920 que o estreante Manoel de Barros fazia reviver, reaclimatando nas paisagens da infância pantaneira e corumbaense a revolução literária nacionalizante, regionalizante e coloquializadora que mudara os rumos da expressão literária brasileira. 

Nesse sentido, se existe uma família de autores com cuja produção a poesia deste primeiro Manoel de Barros revela afinidade, ela deve incluir um Mário de Andrade e um Raul Bopp, mas também algum Bandeira, mesmo um Alcântara Machado, em que pesem diferenças temáticas; e aponta, certeira, para a postura de Oswald de Andrade, o “alumno de poesia”, o poeta do “ver com olhos livres”. Olhos livres sem pecado. São afinidades mais que simplesmente estéticas, pois apontam para certa ética da poética: o compromisso com a fala popular, a rejeição da arrogância dos mandarinatos intelectuais.

Toda poética pressupõe uma ética. “Só bato continência para árvore, pedra e cisco”, declarou certa vez o poeta. No caso de Manoel de Barros, sem demagogia: a palavra que o poeta recolhe do popular é retrabalhada e mesmo distorcida para chegar ao idioleto do poema. A torção na língua também define uma ética poética. Força do neologismo e do ilogismo: neo-logismo.

Já no segundo livro publicado por Manoel, Face imóvel, de 1942, podemos identificar ecos de uma poesia mais meditativa, de observação do urbano metropolitano, em consonância com os textos triunfantes característicos da terceira década do modernismo. Fica evidente a ampliação de sua experiência de mundo e as leituras e diálogos mentais com o grande repertório poético da época, com destaque talvez para o impacto exercido por um Drummond da fase de Brejo das almas, um Vinicius, e até mesmo um Mário tardio. Mas Face imóvel é ponto relativamente fora da curva na trajetória poética de Manoel de Barros, correspondendo ao período em que ele viveu no Rio de Janeiro e viajou aos Estados Unidos.

De qualquer modo, a singularizada ética poética de Manoel não deixa de perpassar todos os poemas de Face imóvel, apesar das diferenças entre o tom desse livro e o restante de sua obra. Essa mesma ética marcará presença no livro seguinte — Poesias, de 1956 —, obra de transição, de reafirmação, mas também de reinvenção ou refundação do poeta por si mesmo e a partir de si mesmo. Em Poesias ainda conviverão pautas concomitantes: de um lado, a memória do menino do mato crescido em Corumbá e no Pantanal; de outro, o poeta que sonda e explora a cidade grande e o centro do mundo.

Não há dúvida que as bases mais profundas da linguagem e da ética poética de Manoel de Barros serão definitivamente desenvolvidas e amadurecidas a partir de Compêndio para uso dos pássaros, de 1961. E tal configuração definitiva está mais presente no livro de 1937 do que no de 1942. No conjunto, porém, esses dois livros de estreia — reunidos aqui num só volume — evidenciam as forças conflitantes e complementares de uma assinatura em pleno processo/devir de singularização autoral.  

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