O dia em que salvamos o planeta.

Claudio Angelo

 

A frase mais importante do século 21 foi pronunciada por diversos líderes mundiais no dia 22 de abril, mas quase ninguém se deu conta. Na Cúpula de Líderes sobre Mudança do Clima, organizada por Joe Biden, os chefes de governo de algumas das maiores economias do mundo fizeram sucessivas referências à “meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5oC”. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma malandragem e uma revolução.

Malandragem porque o Acordo de Paris, a rigor, nunca teve como meta principal limitar o aquecimento global a 1,5oC. O tratado do clima fala em estabilizar o aumento de temperatura da Terra “bem abaixo de 2oC” em relação à era pré-industrial e “envidar esforços para limitá-lo a 1,5oC”. Esta última frase, negociada a duríssimas penas, foi enfiada no texto de última hora. Foi uma concessão da comunidade internacional aos países insulares do Pacífico, que estão sendo lenta e seguramente varridos do mapa pelo aumento do nível global dos oceanos.

Essas pequenas nações há anos vêm pressionando por mais ambição nas metas climáticas. Desde 2009, pelo menos, argumentam que o consenso político que se formara em torno de estabilizar o aquecimento em 2oC lhes decretaria a extinção e passaram a pressionar por um limite mais estrito, 1,5oC. Em Paris, em 2015, seu pleito ganhou um aliado de peso, já que um ilhéu do Pacífico, o havaiano Barack Hussein Obama, era o homem mais poderoso da Terra. A menção a 1,5oC no acordo foi um grande “na volta a gente compra” que o mundo mandou às nações-ilhas.

A aceitação tácita da meta “aspiracional” de 1,5oC pelos líderes globais é revolucionária porque mostra, pela primeira vez, a disposição de ir além da letra da lei e levar a sério as recomendações da ciência. Em Paris encomendou-se ao IPCC, o painel do clima da ONU, um relatório sobre as vantagens de estabilizar o aquecimento em 1,5oC em vez de 2oC. O IPCC concluiu em 2018 que elas eram imensas.

Embora a ciência evidentemente esteja na origem da própria Convenção do Clima da ONU, sob a qual o Acordo de Paris foi produzido, ela vinha sendo tratada como um mero referencial, que necessariamente precisaria se dobrar à realidade da política e ao consenso possível entre 197 países tão distintos quando Qatar e Finlândia, Serra Leoa e Canadá. Isso parece ter mudado em 2021

Parar de nivelar por baixo significa que, mesmo que a humanidade não consiga zerar emissões líquidas até o meio do século – o pressuposto da estabilização em 1,5oC –, o leme da economia mundial passa a apontar nessa direção. Isso nos afasta definitivamente dos cenários de filme-catástrofe nos quais o aquecimento global ultrapassa os 4oC, Recife submerge e Manaus e Mumbai tornam-se inabitáveis a maior parte do ano.

E aceitar a barra mais elevada de ambição só foi possível porque a situação dos Estados Unidos mudou. Uma pessoa em um cargo produziu o impulso político necessário para fazer a implementação do Acordo de Paris avançar quando muita gente realista (inclusive este ex-criba) achava que isso já estivesse fora de alcance.

Joe Biden fez algo que parecia impensável a um presidente americano: sinalizar a troca do eixo da economia do país. Os Estados Unidos, que construíram sua hegemonia sobre pilhas de carvão mineral barris de petróleo, decretaram em 20 de janeiro de 2021 que a era dos combustíveis fósseis tem data para acabar. Um programa de trilhões de dólares que inclui investimentos maciços em inovação tecnológica, instalação de energia renovável e frentes de trabalho para fechar poços de óleo e gás é a resposta do país mais rico do mundo às crises simultâneas da Covid e do clima.

É evidente que a velha economia não irá embora sem luta. As ambições descarbonizantes de Biden esbarram no lobby mais poderoso do planeta, em cujos bolsos estão não poucos congressistas americanos, inclusive do Partido Democrata. Esbarram também na indústria do “fracking”, como é chamada a exploração não-convencional de óleo e gás que tornou os EUA o maior produtor hidrocarbonetos do mundo em menos de 20 anos. E o coração do “fracking” é a Pensilvânia, Estado decisivo para a eleição do presidente.

Ocorre que em política o sinal frequentemente vale mais do que a ação. Quando o presidente dos Estados Unidos diz que em vez de ir lá pegar o petróleo dos árabes o foco será competir com a China pelo mercado de placas solares, o mercado entende o recado e dá seus pulos. A transição pode não ocorrer na velocidade necessária, e quase certamente ela não vai evitar que ultrapassemos o limite de 1,5oC. Mas o alinhamento entre EUA, China e União Europeia em torno do objetivo central de descarbonizar a economia deixa poucas dúvidas de que ela ocorrerá.

Não se iludam: Joe Biden, Angela Merkel, Xi Jinping e Emmanuel Macron não querem salvar o planeta. Essa história de salvar planeta é departamento da Greta Thunberg. Esses líderes estão numa disputa por hegemonia econômica. A sobrevivência do capitalismo depende da geração constante de valor e de segurança, e eles entenderam que a crise climática ameaça a segurança (e, no limite, o consumo) e a inovação tecnológica necessária para resolvê-la cria valor.

Se alguém ainda tem dúvida do roteiro que os EUA seguirão na era Biden e possivelmente além basta ler o ótimo Como evitar um desastre climático, de Bill Gates. Ali o símbolo da revolução econômica do fim do século 20 desenha para quem quiser ver os pressupostos da revolução econômica do 21: estabelece a emissão zero como o número de referência para a humanidade nas próximas décadas e traça o curso das inovações e políticas públicas necessárias para chegar lá. É um manual da manutenção do poder econômico dos EUA no Antropoceno.

O recado que fica dessa mudança de direção capitaneada por Biden no transatlântico da economia global é que ninguém que queira ser alguém na nova ordem mundial poderá se safar apenas fingindo que é verde. Países que arrotam ambição etérea em encontros internacionais enquanto domesticamente reduzem o alcance de suas metas vão se dar mal. Países que sequestram suas florestas e exigem dinheiro de fora para não desmatá-las vão se dar mal. E países que apostam em um futuro brilhante para o petróleo e subsidiam sua exploração fortemente até 2040 vão terminar com ativos encalhados. Me diga se você conhece alguém entre a Venezuela e o Uruguai que esteja nessa situação.

 

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

 

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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