O nome do pai

21/02/2022

Desenho por Livia Arnaut

 

A senha aparece no painel, ele toma impulso com a bengala, vai em passos curtos até a mesa. Assento-me ao seu lado. Ele emagreceu, o rosto está murcho. Ainda dá para ver o roxo na testa, marca da última queda. De vez em quando o pescoço repuxa, sofre um solavanco.

Ele sempre hesita antes de falar.

“Vim por causa da carta”, diz, vasculhando a pastinha preta. “Vocês me mandaram uma carta”.

Ele custa a abrir o envelope, a mão treme mais quando está nervoso.

“Não sei por que nos submetem a isso”, diz, entregando o papel ao funcionário.

O funcionário tem uma mesa moderna, limpa. Nenhuma pilha inútil, nenhum clipe solto. Não desvia os olhos do computador.

“São os protocolos, senhor”, diz o funcionário, enquanto digita. “Se não provar que está vivo, perde o benefício”.

Faz uns três anos que o acompanho à agência. Seu olhar se tornou vago, infantil. O funcionário busca o processo no sistema, ele gira a bengala apoiada no chão.

“O senhor consegue preencher essa ficha?”, o funcionário pergunta, retirando a folha da impressora.

Estico o braço para apanhá-la, ele ergue a bengala.

“Eu escrevo”, diz.

Abre a pastinha preta de novo, pega a caneta que tem as iniciais do seu nome. Uma caneta preta, brilhante, com anéis dourados. Várias vezes ele a perdeu, achou-a de novo.

A agência está cheia. Duas fileiras de idosos esperam a sua vez.

O formulário é enxuto – alguns dados e a assinatura.

Nome completo, data de nascimento. A letra dele está cada vez mais miúda, quase ilegível.

Estado civil, endereço. Ele confirma em voz alta o que vai lançando no papel – como se os sons garantissem a existência das palavras.

Identidade. Nome do pai.

No nome do pai ele para. Repete-o duas, três vezes, pausadamente, levantando a cabeça.

“Escreve-se com ph”, ele diz. “Tem som de f, mas escreve-se com ph. Ph seguido de y.” 

O funcionário para de digitar, dá atenção a ele.

“Meu pai nasceu no século 19”, ele diz. “Quando se escrevia farmácia com ph. Faz muito tempo que não pronuncio o nome do meu pai. Com p, h – e y.”

Da minha cadeira observo-o, o modo orgulhoso como diz o nome do pai. Ouço o som do ph saindo de sua boca. Tento me lembrar de palavras com ph, de grafias que caducaram. Philologia, philatelia. Phósforo, Photografia. Phýsica. Metaphýsica. Esse sopro grego nas palavras. Penso na sobrevivência que o nome teve, sussurrado, invocado, gritado, e escrito, com ph – e y. Em um século, atravessou três reformas ortográficas, duas guerras mundiais. Alguns golpes de estado, duas pandemias. Sem o nome do pai, ele perderia o beneficio.

Ele me cutuca com a bengala. Acabou de preencher a ficha. Sente dores no pescoço, nas costas, quer ir logo para casa.

Agradece ao funcionário, levanta-se de um salto. Como uma flecha, parte em direção à saída, com seus passinhos picados.

“Calma, pai, vai devagar”, eu digo, com medo de outra queda.

A próxima senha está no painel, sigo atrás dele pelo saguão. Chamo-o de pai, chamo-o pelo nome – o mesmo que ele herdou de seu pai, trocando o ph pelo f, o y pelo i. Ele finge não ouvir. Ainda agora, enquanto escrevo, continuo a chamá-lo – mas é já enfim um signo liberto, desvencilhado do corpo que o prendia. Chamo pelo seu nome em voz alta, tento conter sua pressa, sua vontade de voltar para casa. Mas ele já cruzou a porta e alcançou a luz da rua.

Marcílio França Castro

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog