O que Manoel de Barros me ensinou sobre haicais

16/10/2018

por Alonso Alvarez

 

Manoel de Barros abriu o livro O guardador de águas, parou numa página, apontou, e disse: “Olha, Alonso, este poema foi escrito para iluminar este verso.”

Estávamos num boteco em frente ao MASP, se esquentando com conhaque por causa do outono gelado durante o encontro de poetas no “Artes e Ofícios da Poesia”, do outro lado da Avenida Paulista.

Tinha conseguido, pela primeira vez, trazer o poeta tímido para um evento público. Já éramos amigos, via carta, e ele aceitou o convite, com algumas condições: não dar entrevistas nem participar de rodas com mais de três pessoas. E ficamos, ele e eu, atravessando a avenida, cada vez que o frio apertava, atrás de uma boa dose de conhaque. 

Eu já havia feito alguns haicais que surgiram depois de uma brincadeira com o nome da poeta Alice Ruiz durante o II Encontro Brasileiro de Haicai, que acontecia no Centro Cultural São Paulo, bem em frente à minha primeira livraria. Naquela tarde de sábado, eu ia e voltava para a livraria depois de dar algumas espiadas no encontro. Eu era apenas um livreiro. Mas no final do evento haveria um concurso. Um tema seria escolhido e os participantes teriam 20 minutos para fazer um haicai, que seria julgado por um júri composto por vários praticantes do haicai no Brasil, entre eles Paulo Leminski e Alice Ruiz.

E o tema escolhido foi “noite”. Na hora me veio uma ideia para brincar com o nome da Alice Ruiz. Escrevi e fui entregar para o pessoal que recolhia os haicais participantes. Não aceitaram o meu, pois não tinha o número de inscrição e era isso que garantia o anonimato. Eu não havia feito a inscrição no evento, e já estavam encerradas. Quase desistindo, achei um crachá jogado numa mesa e peguei o número de inscrição de alguém que certamente já tinha ido embora.

Por incrível que pareça, ganhei o primeiro lugar. Chamaram pelo nome do dono do crachá e como ele não aparecia, leram o haicai, e assim descobri que o meu fora o vencedor. Claro que os japoneses da Aliança Brasil-Japão não gostaram muito da minha atitude, mas depois se divertiram com a brincadeira.

No ano seguinte ganhei um Prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial, e a gráfica que imprimiu os livros ficou tão feliz com o prêmio que me deu de presente a impressão de um livro meu, se eu tivesse... Mas eu não tinha.

Foi quando surgiu a ideia do livro de haicais Dia Noite, com Camila Jabur. Um livro que girasse na mão do leitor, com duas capas, com doze haicais sobre o dia e doze sobre a noite. E começaram a jorrar muitos haicais. Eu até achava que estava fazendo algo errado, mas Alice Ruiz riu e disse que era assim mesmo, que eu aproveitasse o jorro, pois a fonte às vezes seca. A nova safra deu origem a uma caixa com quatro livrinhos, chamada , “minha alma vai atrás de ti”, em guarani.

Depois disso, aconteceu: a fonte secou.

Só recentemente, muitos anos depois, colho um ou outro haicai pelas ruas quando vou passear com o meu cachorro:

 

vento com pressa
uma folha corre atrás
mas logo desiste

 

o ipê na rua
quem parou pra te ver,
eu ou a lua?

 

vem com o vento
o teu perfume
que as flores espalham

 

ela no rio
a água deitada
no corpo dela

 

Naquela noite fria de outono no Trianon aprendi com o poeta Manoel de Barros algo que também pode definir o haicai: ele é um instante iluminado pela natureza que nos cerca — breve e leve, mas que revela que a vida pulsa.

***

Alonso Alvarez é poeta, autor de literatura infantil e juvenil e editor. Seus haicais integram a coletânea Haicais tropicais, publicada em 2018 pelo selo Boa Companhia.

 

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