O som do passado que ecoa no presente

30/06/2021

Itamar Vieira Junior*

 

Foto de Fabio Seixo

 

O som do rugido da onça é uma obra única no panorama literário brasileiro atual. Poderia ser classificado como um romance histórico, já que aborda aspectos conhecidos da história brasileira, mas ao findar sua leitura constatamos que não pode ser encerrado em temas.

Ao contrário, o romance expande os horizontes da arte literária com memória, argumentos antropológicos e o melhor que a ficção pode nos oferecer. Partindo da mítica viagem dos exploradores Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, da Academia de Ciências da Baviera, por regiões do Brasil quase intocadas no século XVIII, a autora narra com a segurança dos mestres a epopeia vivida não pelos naturalistas — aqui personagens secundários —, mas pelos indígenas Iñe-e e o menino Juri, das etnias Miranha e Juri, respectivamente, raptados de suas aldeias e levados para a Europa.

Na narrativa de Spix e Martius, as crianças estavam sob o jugo de “bárbaros”, quando as evidências nos mostram o contrário. A partir das perspectivas e cosmovisões de personagens ocultas na historiografia oficial, o romance captura com habilidade não só a memória de um país sombrio, moldado na tragédia da exploração colonial, mas o drama vivido pelos povos originários que se estende de forma estarrecedora aos nossos dias, como podemos confirmar ao final da leitura.

Muitos poderiam classificar a obra como tributária do realismo mágico, isso se a autora não questionasse a própria noção de realidade: o que é real? A minha forma ou sua forma de assimilar o mundo? A resposta poderá vir de onde menos se espera.

Com fina efabulação e lirismo, Micheliny Verunschk nos apresenta as vidas cindidas dessas crianças, guiando o leitor, página a página, por um universo que ao mesmo tempo nos parece familiar e distante. Com o domínio das perspectivas dos protagonistas da obra, a autora recria o significado da ruptura vivida por essas personagens. É assim que nos confrontaremos com o éthos dos povos originários e decidiremos se leremos essa história como um estranho ou se permitiremos conceber uma maneira nova de elaborar o mundo que nos cerca.

 

***

 

Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA. É autor de Torto arado, vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog