Os amantes possíveis

18/12/2019

Por Mateus Baldi*

 

 

Pessoas normais, segundo romance da irlandesa Sally Rooney, é uma ode aos erros, à possibilidade de resistir ao naufrágio enquanto houver esperança. Se “a vida é a coisa que você traz consigo dentro da própria cabeça”, todos os esforços da história de desamor entre Connell e Marianne são exatamente o que a frase encapsula: uma odisseia por mentes antagônicas que, percorrendo os anos 2010, se complementam – não por acaso, a capa é um casal abraçado dentro de uma lata de sardinha, o que diz muito sobre o discurso de amor possível que Rooney pretende construir.

Adolescentes no interior da Irlanda do começo da década, Connell e Marianne são esquisitos à sua própria maneira. Ele é membro do time de futebol da escola e bastante popular; ela é a garota inteligente e estranha, odiada por muitos, e que lê Proust no recreio. Quando começam a ficar juntos, no final do ensino médio, decidem manter a relação em sigilo para evitar olhares estranhos nos corredores – também porque Lorraine, mãe de Connell, trabalha na casa de Marianne. No oceano das relações efêmeras, numa época em que tudo ficou mais complicado de encontrar e sentir, se relacionar com alguém que te entende pode ser ao mesmo tempo alívio e prisão, e é sempre bom não correr riscos. Mas tudo bem se você estiver disposto – é sobre essas escolhas tortas, essa busca por uma insistência dissipada nos encontros, que Sally Rooney discorre com maturidade desconcertante.

Órfã de pai desde os 13 anos, Marianne acostumou-se a um cotidiano de abusos psicológicos, seja da mãe, que não se importa muito com seus problemas, seja do irmão, um machista de última categoria. Enxergando em Connell a possibilidade de ser compreendida por se mostrar de verdade, sem concessões ao clubinho dos populares, Marianne lentamente vai se perdendo na armadilha que criou para si. Connell, por sua vez, precisa lidar com o fato de ser a pessoa mais sensata no grupo de amigos – homens que compartilham nudes alheios, por exemplo –, e o peso de suas escolhas condena a relação com Marianne a rumos tortuosos. Lidando o tempo todo com a estranheza, Pessoas normais constrói um estudo sobre a melancolia da juventude sob a égide das fronteiras do pertencimento num mundo que só deseja expelir os diferentes – e eis aqui a grande sacada de Rooney: transferir o controle. Invertendo os polos, quando os dois chegam à faculdade, em Dublin, é Marianne quem se encontrou, e Connell parece relegado a uma espiral de perdição por não conseguir acertar os ponteiros do próprio relógio.

Parodiando o próprio título a cada capítulo enquanto se escora em sua maior força, os personagens, este romance nada tem de normal. Na gangorra do poder, seus protagonistas e coadjuvantes são sujos, erráticos, mesquinhos, fazem coisas horríveis e se redimem só para errar duas páginas adiante. O contrapé a que Rooney submete o leitor funciona porque irrita de tão certeiro – seria muito esperar que um romance sobre adolescentes e jovens adultos pudesse oferecer uma possibilidade de redenção. Na era da cultura do cancelamento, em que todos os atos são hipervigiados sob a ameaça de banimento social, é gostoso perder a noção das horas se divertindo com quem só espera da vida a possibilidade de existir, pouco importando o que fazer para atingir o objetivo.

Explorando as almas torturadas de Connell e Marianne, Sally Rooney se firma como um dos grandes nomes desta geração ao esnobar as convenções das histórias ditas românticas, entrando para o seleto rol dos escritores que conseguem fazer não apenas um simples retrato do zeitgeist, mas também um testamento para o futuro: se quiserem saber como pensavam e agiam os millenials em todos os seus delírios, contradições, afetos e descaminhos, basta procurar uma lata de sardinha na livraria ou biblioteca mais próxima – estarão ali, contabilizando o saldo da barbárie, deitados à espera de Deus e o mundo, os amantes possíveis.

***

Mateus Baldi é escritor e crítico literário. Em 2016, fundou a Resenha de Bolso, plataforma de críticas de literatura contemporânea.

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog