Os bastidores do Nobel

23/12/2017

Foto: Reuters

Luiz Schwarcz acompanhou a cerimônia de entrega do Nobel de Literatura a Kazuo Ishiguro, ocorrida no último dia 10, e escreve sobre os bastidores do prêmio. Texto originalmente publicado na Folha de S. Paulo.

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Quando foi anunciado que Kazuo Ishiguro havia ganhado o Nobel de Literatura de 2017, não me contive e lhe escrevi um e-mail cheio de entusiasmo, que terminava com: "te vejo em Estocolmo".

Embalado pela comoção do prêmio e por certa dose de imodéstia, eu achava que seria um dos convidados do autor. Eu também sabia que, caso não fosse, poderia escrever para a academia sueca, como editor brasileiro do agraciado, pedindo para fazer parte das inúmeras cerimônias e festas que celebram alguns cientistas e um escritor a cada ano.

Tenho bom contato pessoal com Kazuo (ou Ish, como é chamado pelos amigos), mas resolvi não arriscar e escrevi para a organização do evento.

Não precisava, porque o autor respondeu rapidamente após o comunicado que marcou sua vida. Passei a definir esse homem tão generoso através desse gesto simples: responder a um e-mail de seu editor brasileiro poucas horas depois de ganhar um Nobel.

A mensagem de Kazuo Ishiguro por sorte chegou antes da resposta dos suecos: disseram que em 2017 apenas 14 amigos e dois familiares do laureado seriam convidados, todos escolhidos por ele. Teria a crise atingido até a Fundação Nobel?

Paranoico, fiquei com receio de ter me imposto ao escritor. Ofereci meu lugar a amigos que trabalham na agência literária do autor e que não foram convidados. A resposta que obtive, porém, foi a de que de fato eu fazia parte da lista de Ish.

Em Estocolmo, vim a saber que a Fundação Nobel não enfrenta crise financeira, mas, pelo crescimento exponencial da festa, nos últimos anos precisou limitar o número de convidados —pedidos de editores não são mais aceitos.

A partir daí, Ish comandou parte da burocracia dos preparativos para a festa, com a delicadeza que lhe é peculiar. Informou-me que, sendo o fraque o traje obrigatório na cerimônia da outorga, a melhor coisa seria que eu enviasse minhas medidas ao alfaiate indicado pela academia, retirando a roupa pronta, em Estocolmo, logo ao chegar.

Há 19 anos, na única outra vez que fui à cerimônia do Nobel (na premiação de José Saramago), não sabia dessa alternativa; aluguei meu traje, bem menos caprichado, e mais caro, no Brasil.

Outras informações e oferecimentos de serviços chegaram, via Ish ou direto da academia, incluindo alternativas para a compra da passagem área, convites para o concerto da Orquestra Real da Suécia com regência de Gustavo Dudamel e para a festa dos estudantes suecos que rola na madrugada de domingo, além de jantares e almoços para os 14 editores internacionais presentes.

APERITIVOS

Cheguei a Estocolmo na sexta (8), perdendo assim, por um descuido na compra da passagem, a conferência mais longa do escritor, que acabei vendo no Youtube, no quarto de hotel.

Recomendo a todos que assistam ao passeio que Ishiguro fez pelos primórdios da sua carreira, com destaque à influência que a música popular —em particular, a canção "Ruby's Arms", de Tom Waits— teve na construção do relacionamento entre os personagens de suas obras, a partir de Os vestígios do dia.

Seguindo o protocolo, fui direto ao alfaiate provar meu fraque. Soube então que, nesse local, mais de 250 fraques são alugados anualmente para o Nobel, além dos trajes femininos. Tudo feito com eficiência espantosa.

Enquanto o filho de um dos fundadores do local notava que minhas calças haviam ficado um pouco curtas e que os botões do casaco estavam levemente desapertados, eu provava a camisa, enfrentava o colete e os suspensórios, e os ajustes eram feitos.

Pensei que o processo demoraria algum tempo e perguntei se a roupa poderia ser enviada ao Grand Hotel, local onde se hospedam os convidados dos laureados. Não houve tempo para a resposta, pois o fraque devidamente consertado me aguardava no andar de cima da loja, onde um grupo de dois costureiros e uma passadeira cuidavam dos acertos finais.

Não compreendi muito bem as instruções para dar o laço na gravata borboleta branca, mas fui tranquilizado pela informação de que a equipe do alfaiate estaria no hotel, no dia da cerimônia, a partir das 13h, não só para o tal laço nas gravatas como também para ajudar a atarraxar os delicados botões da camisa, feitos de madrepérola.

O traje para as outras cerimônias exige menos trabalho. Para elas éramos levados, vestindo "passeio completo", por ônibus especiais, ou recebíamos vouchers de táxis já contratados pelos anfitriões.

Chamou minha atenção como a comunidade científica e literária desconhece as normas de uma sala de concertos, aplaudindo a Sinfonia Júpiter, de Mozart, ao final de cada movimento, ou se surpreendendo ao notar que a famosa trilha sonora de 2001 - Uma Odisseia no Espaço era composta a partir dos acordes iniciais de um poema sinfônico de Richard Strauss, inspirado em Assim falou Zaratustra, de Nietzsche.

Além disso, no concerto, foi curioso conhecer a pompa com que a família real é recebida, após um silêncio de quase cinco minutos, com a orquestra presente no palco sem se mover, enquanto eu fantasiava que a demora se dava porque terroristas haviam sequestrado o maestro, ou talvez porque, distraído, Dudamel se atrasara para o evento.

Só com a chegada do rei e da rainha da Suécia é que o silêncio pôde se romper, com um rufar de tambores e o som do hino nacional. A entrada do maestro, que se encontrava apenas sequestrado nas coxias à espera do ritual majestático, por fim ocorreu.

CERIMÔNIA

Pompa tampouco falta à cerimônia final, no domingo; dividida em duas partes, chega a durar mais de oito horas.

Na primeira parte, os laureados recebem o prêmio no palco da mesma sala de concertos, sentados em poltronas vermelhas alinhadas à esquerda, enquanto o rei, a rainha, a princesa e seu cônjuge sentam-se em poltronas douradas e azuis à direita, em frente aos acadêmicos e acadêmicas, que têm que se contentar com o feltro dos assentos somente em azul.

Mas alguns membros da academia procuram brilhar com vestidos de longa cauda, adereços dourados e vermelhos, sobre tecidos vistosos.

Soube por uma especialista em moda presente no banquete que Sara Danius, secretária-geral e responsável pelo discurso de apresentação do Nobel de Literatura, sempre encomenda um vestido especial de um costureiro sueco famoso e compete com a ministra da Cultura, que neste ano veio com um longo justo, em tecido plástico branco, brilhante, com enormes abas de papel em forma de leque.

Incumbida de entrar de braços dados com Kazuo Ishiguro no banquete, a ministra quase escondeu o escritor atrás de suas asas de papel.

No banquete se pede abstinência de selfies e fotos, mas a transmissão passa ao vivo na TV sueca —momento em que as famílias se reúnem e ficam vidradas, observando discursos e trajes da realeza, das autoridades e das acadêmicas.

A entrega de cada prêmio é feita pelo rei, ao som de trompetes e precedida por um discurso de um dos acadêmicos explicando a escolha.

O responsável pela apresentação do prêmio de economia é conhecido por suas sacadas narrativas e anedóticas, enquanto a secretária-geral prefere as comparações, que no caso de Ishiguro conseguiram juntar Jane Austen a Kafka e Marcel Proust a P. G. Wodehouse.

Mesmo com o leve senso crítico que aflora nesta crônica, é honesto dizer que me emocionei ao ver pela segunda vez um autor amigo fazer a reverência protocolar ao rei e ser efusivamente aplaudido.

O banquete na prefeitura reúne, num enorme pátio coberto, 1.300 convidados, além de centenas de garçons e garçonetes que são literalmente regidos por uma jovem maîtresse d'hotel. Com um levantar e abaixar de mãos, ela faz um batalhão de baixelas descerem as escadarias, erguidas pelos serviçais.

Um show em três atos com representação e canções populares, que fariam o Grammy ou o Oscar corar de embaraço, intermeia toda a festa. O mesmo não se pode dizer da culinária e dos vinhos, que, levando em conta o número de convidados, é de muito boa qualidade. O ritual todo é bastante kitsch, mas o orgulho de editor resiste incólume.

Neste ano notei uma mudança infeliz com relação a 19 anos atrás. Os discursos dos laureados ficaram para o final, de maneira pouco gentil, ocorrendo quase às 23h. Mesmo com toda a batalha de egos nos rituais, os discursos eram o momento mais aguardados por todos nós.

As falas dos cientistas, sem exceção, tiveram pitadas de humor, enquanto as do economista Richard Thaler e sobretudo de Kazuo Ishiguro primaram pela emoção.

O laureado de química, que discursou em nome dos três vencedores, contou que, todos os anos em que o Nobel é dividido por mais de um cientista —o que é quase uma regra—, um colega francês escreve uma carta com sinceras condolências, lamentando o fato de o premiado ter que dividir a láurea com os outros imbecis que o acompanham, citando-os nominalmente.

O detalhe é que todos recebem a mesma carta, com mudanças só nos nomes do destinatário e dos "imbecis".

Ish fez o discurso mais pessoal e menos anedótico, rememorando quando, ainda em Nagasaki, sua cidade natal, viu em uma HQ o desenho de uma bomba explodindo. Tinha então cinco anos, e sua mãe lhe explicou que o homem que inventara a dinamite se arrependera e instituíra um prêmio para promover a paz e o bem. Prêmio ao qual agradeceu, lembrando de sua infância, com grande emoção.

Ao final, a família real saiu em fila pelas mesmas escadas que antes foram usadas pelos garçons e logo depois levariam os convidados ao baile final.

Ao som de valsas vienenses, de Frank Sinatra e (inacreditavelmente) do esquecido Tom Jones, a comunidade científica e literária continuou provando sua maestria nas disciplinas que tentam fazer o mundo caminhar para um futuro melhor, com seus corpos se rendendo, sem graça e suingue, mas com muita alegria, a variados ritmos musicais. Enquanto isso, lá fora começava a nevar.

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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