Os dois mundos de V. S. Naipaul

16/08/2018

por Júlio Pimentel Pinto

Foto: Nancy Crampton

 

Numa entrevista de 2002 ao jornal francês Le Monde, V. S. Naipaul, que morreu no último 11 de agosto, tratou de um de seus temas favoritos, a ambiguidade do romance: “A periferia da narrativa é autobiográfica, mas não se trata da autobiografia completa do escritor. Ela não diz respeito nem à sua vida sentimental nem à profissional. Trata dos ímpetos do romancista, da maneira como ele acerta contas consigo e também entre ele e o resto do mundo. [...] Eis o que considero a propósito do romance: os leitores não querem ler história completamente inventada. Estão em busca do modelo, do original. Desejam que o escrito se ligue a um fato real.”

A combinação entre um cerne inventado e um entorno baseado na experiência vivida marcou a maioria dos livros de ficção de Naipaul — desde O massagista místico (1957) até Sementes mágicas (2004) — e penetrou surdamente na sua ensaística e nos impressionantes relatos de viagens ao mundo islâmico, à África ou à América do Sul.

Como afirmou no discurso feito na cerimônia de recebimento do prêmio Nobel de Literatura de 2001, “o mundo exterior existe numa espécie de sombra” que o romance ilumina parcialmente, ao imaginar um universo paralelo, tantas vezes contraditório, certamente dúbio: realidade e ficção como dois mundos que se interligam, confinam-se.

“Dois mundos” — título de seu discurso perante a Academia Sueca — é metáfora também para a convivência entre o velho e o novo na Trinidad natal de Naipaul, em meio à comunidade de indianos imigrantes, ou para a Malásia, o Paquistão ou o Irã muçulmanos. Da mesma maneira que, na ficção, uma zona de sombra reveste o real, na experiência histórica o passado resiste, oculto sob os ares da transformação, e rapidamente prolifera, até contaminar irreversivelmente o presente.

Por isso Naipaul via com olhos céticos e irônicos a guerrilha ou a política de massas na América Latina; por isso mais de uma vez repetiu, ecoando Flaubert ou Conrad, sua desconfiança das ideologias, a indisposição para julgamentos morais, o pessimismo e a apreensão diante das relações que os homens travam com as instituições. E reiterou Proust, ao afirmar que o escritor é importante como escritor, e não como ser social.

Entre a ficção e a história, entre o passado e o futuro: Naipaul posicionou seu olhar nessa fronteira tão porosa e sombria, nela construiu sua perspectiva. Não à toa, o narrador do inquietante O enigma da chegada (1987) observa a decadência da família do senhor das terras por onde circula, a grama que cresce descontroladamente, a saída do último dos dezesseis jardineiros que trabalhava na propriedade, e constata: “eu tenho vivido com a ideia de mudança, ela tem estado sempre presente, constante; tenho visto um mundo em fluxo, a vida humana como séries de ciclos que, de vez em quando, se vão. Mas a filosofia agora me escapa. A terra não é só terra, o que a simplificaria demais. A terra partilha o que respiramos nela, é tocada por nossos hábitos e por nossas memórias.”

Num tempo que anseia pela mudança e pelo futuro, que valoriza tanto as certezas e convicções inarredáveis, Naipaul escreveu sobre o fluxo da vida, a impermanência, a memória, o subjetivismo de toda percepção; sobre a indefinição, a hesitação, a impossibilidade das categorias absolutas. Escreveu sobre a ambiguidade, a errância e o estranhamento — que, apesar de fingirmos negar, conhecemos tão bem.

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Júlio Pimentel Pinto é professor no Departamento de História da USP e estuda as relações entre história e ficção.

 

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