Os muitos Evangelhos de João

10/04/2018

Por Frederico Lourenço

Ao contrário do que muitos pensam, o modo como nós hoje lemos qualquer um dos 27 livros do Novo Testamento difere radicalmente da foma com que eles eram lidos até invenção da imprensa, no século XV. Antes disso, não havia dois exemplares iguais de nenhum texto do Novo Testamento. Os milhares de manuscritos existentes eram todos diferentes.

A partir da invenção da imprensa, e da primeira edição impressa do Novo Testamento grego em 1516, pela primeira vez na história do Novo Testamento passou a haver milhares de exemplares do texto exatamente iguais. De forma inédita, diferentes grupos de pessoas passaram a ler o mesmo texto. Como consequência, as pessoas começaram a pensar que esse texto impresso era a única forma que ele podia assumir.

FOTO: Aaron Burden / Unsplash

Em 1952, foi encontrado no Egito um códice em papiro contendo o Evangelho de João quase completo. Este livro (conhecido como «Papiro 66») está hoje numa biblioteca na Suíça e constituiu uma descoberta fenomenal, porque nos permite ler o Evangelho de João como os leitores deste livro o leram por volta do ano 200. 

Ora os leitores deste Evangelho de João tiveram contato com um texto diferente, em certas passagens, daquele que lemos hoje. Em primeiro lugar, trata-se de uma versão do texto a que falta o episódio da Mulher Adúltera. Nisto, o papiro não é único, pois são vários os manuscritos antigos do Evangelho de João em que não consta essa passagem, pelo que se pensa não ter feito parte do texto original.

Depois, há um aspeto muito curioso na primeira frase do Evangelho de João, que é das asserções mais intraduzíveis jamais escritas em grego. «No princípio era o Verbo e o Verbo era com Deus e Deus era o Verbo. Este era no princípio com Deus».

Para lá de todos os problemas de como traduzir «lógos» (verbo?), há também o problema de como articular a frase, já que os antigos escreviam sem separação de palavras e sem pontuação. Com base nesse facto, J. N. Sanders, um notável estudioso do Evangelho de João, propôs no seu comentário que as duas frases iniciaisdeviam articular-se de outra maneira: «No princípio era o Verbo e o Verbo era com Deus e Deus era. Este Verbo era no início com Deus». 

Para conseguir esta articulação em grego, basta deslocar um ponto final. A ideia de Sanders, indubitavelmente sugestiva, encontra porém um obstáculo no Papiro 66. Isto porque no primeiro fólio do papiro lemos um ponto final muito nítido, que articula a frase conforme ela foi tradicionalmente entendida. Os leitores daquele livro, há 1800 anos, não teriam concordado com a proposta de Sanders.

Será que um dia se encontrará um documento que seja ainda mais antigo do que o Papiro 66? Um texto ainda mais próximo do tempo em que se pensa ter sido escrito este Evangelho? É perfeitamente possível. Por isso o estudo do texto dos Evangelhos é um processo em aberto, que novas descobertas poderão revolucionar a qualquer momento.

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Frederico Lourenço é escritor, tradutor e professor de grego antigo. Formou-se em línguas e literaturas clássicas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu seu doutorado. Desde 2009 leciona na Universidade de Coimbra. Traduziu do grego a Odisseia, Ilíada e as tragédias de Eurípides, Hipólito e Íon. Sua tradução da Odisseia recebeu o prêmio D. Diniz da Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores. Pela publicação do Volume I da Bíblia recebeu em 2016 o prêmio Pessoa

Frederico Lourenço

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