Palavras vermelhas, olhos de trovão

“A poesia é um beijo entre duas línguas”, diz Leslie Kaplan em um poema sobre tradução e poesia. Uma palavra de uma língua encontra outra palavra de outra língua, os sentidos se tocam, a anatomia de cada uma se mostra, o poema contém muitas camadas.
Também ao pensar no movimento da tradução e nas minúcias de cada encontro entre línguas, é possível ver um poema nas diversas curvas de sentido.
Penso, por exemplo, em uma passagem da Antígona, de Sófocles, que contém palavras vermelhas. E olhos de trovão. Tais imagens vêm de expressões usadas em diferentes línguas para uma mesma palavra em grego que designa preocupação. Ao colocar as expressões lado a lado penso em um poema que pudesse conter todas elas.
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Haroldo de Campos conta uma anedota curiosíssima sobre a tradução que o poeta alemão Hölderlin fez de Antígona (no texto “A palavra vermelha de Hölderlin”). Goethe, Schiller e Voss, em um jantar na casa do primeiro, se divertem horrores falando mal da tradução de Hölderlin. Segundo Haroldo, eles fazem troça de certas passagens e comentam em tom burlesco o estranhamento produzido por sua versão “tão pouco alemã”.
O exemplo que Haroldo comenta da tradução de Hölderlin é fascinante. Antígona e Ismênia (filhas de Édipo) acabaram de perder seus irmãos na guerra e, por um decreto do tio, apenas um dos irmãos será enterrado. Assim tem início a peça, quando as irmãs se encontram e Ismênia pergunta (na recriação de Haroldo de Campos a partir da tradução alemã):
“Que se passa?
Tua fala se turva de vermelho!”
Em alemão, Hölderlin traduziu literalmente o verbo grego “kalkháino”, cujo sentido figurado é “estar sombrio, mergulhado em reflexões” (“preocupado”), e o sentido literal é “ter a cor escura da púrpura”. A tradução literal da expressão seria algo como “Você purpureja uma palavra” – esta palavra vermelha/púrpura traria o tom catastrófico do mar grego.
Se em grego não ocorre um estranhamento nesse trecho pois é uma expressão idiomática, já a tradução literal alemã escandalizou quem a leu na época. Só no século XX, a tradução de Hölderlin receberia uma leitura mais atenta quando Brecht percebe que nela havia o uso de certas imagens gregas e um jogo formal com o original.
Bem aqui no meio do vermelho do mar grego vejo os olhos de trovão, de uma tradução de Anne Carson.
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A poeta canadense fez uma tradução de Antígona publicada em belíssima edição (ilustrada por Bianca Stone) que ela chamou de Antigonick. É uma versão mais curta da peça, feita em diálogo com o trabalho visual citado, e que incorpora (nas falas dos personagens) comentários críticos sobre a fortuna crítica de Antígona. É uma tradução extraordinária pois traduz a forma e recria o texto incorporando as camadas de leitura desse texto através dos séculos. Como queria Haroldo, é uma tradução como criação e crítica.
Aqui destaco, na versão de Carson, a mesma fala de Ismênia:
“what’s the matter
you have your thunder look”
( “qual o problema
você está com seu ar de trovão)
As expressões idiomáticas “face like thunder” ou “look like thunder” têm o sentido de “estar muito bravo”. É forte pensar na imagem literal da expressão: alguém que tem o “ar de trovão”; ela facilmente poderia se transformar em um “olhar de trovão” (ou olhos de trovão). Como passar da fala da expressão grega para o olho, da palavra vermelha para olhos de trovão.
Observando esse beijo de línguas entre Hölderlin, Haroldo de Campos e Anne Carson, e pensando na ideia da expressão idiomática que há no original, me ocorreu uma expressão em português que proponho para compor, não uma tradução, mas um poema imaginário sobre o assunto:
“o que aconteceu?
você tem sangue nos olhos.”
O vermelho da catástrofe aparece no nosso idiomatismo, a expressão vem pelo olhar e não pela fala – e os olhos falam como um trovão, com a tenacidade exigida de Antígona para viver o que está por vir.
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Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).
Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).
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