Paris, 2015

13/11/2020

Por Tércia Montenegro

 

 

Exatamente cinco anos atrás, em 13 de novembro, os atentados terroristas em Paris chocavam o mundo. Eu estava na capital francesa uma semana antes; soube da notícia quando já havia retornado a Liège, cidade belga onde então residia. Fazia minhas primeiras anotações para o livro que viria a se tornar o romance Em plena luz, e naquele instante soube que minha protagonista ficaria muitíssimo perturbada – tanto quanto eu mesma estava – com todas as circunstâncias da chacina.

Três equipes de homens realizaram ataques quase ao mesmo tempo, usando dispositivos explosivos idênticos e fuzis do tipo Kalachnikov, em dois casos. Perto do estádio de França, em Saint Denis, às 21h20, o primeiro grupo acionou coletes-bomba. Minutos depois, outro grupo de terroristas abriu fogo contra clientes de bares e restaurantes do 10° e 11° arrondissements. Em seguida, um dos criminosos explodiu seu colete num café no Boulevard Voltaire. Às 21h40, o terceiro grupo chegou a uma sala de espetáculos do 11º arrondissement, atirou nas pessoas do lado de fora do prédio, e depois, já dentro dele, fuzilou dezenas. O resultado foi um massacre com mais de 130 mortos e 350 feridos numa só noite.

No dia seguinte, o Estado Islâmico assumiu a autoria dos ataques, realizados a partir de uma complexa organização mantida na Bélgica. 

Em plena luz se transformou num livro sobre fugas. A personagem principal, Lu, incialmente foge de um relacionamento abusivo para a França – e lá encontra outros tipos de violência, numa escala muito maior. Essa mulher, uma fotógrafa que se faz escultora antes de voltar a exercer o seu ofício, é levada a pensar sobre o corpo: o seu próprio corpo, que escapa para outras paisagens, foge do sofrimento e dos convívios desastrosos, e o corpo dos outros – refugiados, imigrantes que levam apenas o que a experiência de si carrega, pois abandonaram todo o resto. É contra eles que o matemático Étienne se revolta: este personagem detestável também foge. Os seus preconceitos são modos de se desviar do alheio, esquivar-se à diversidade do mundo.

Lu pensa no corpo dos terroristas, o corpo estilhaçado dos fanáticos e das vítimas. Após os atentados de novembro, constata como é violento tudo o que atinge o indivíduo, seja aos poucos ou subitamente, no ataque físico ou psíquico. Nesse sentido, a sociedade é uma potência de agressividades, com seus códigos de repressão moral, religiosa, comportamental... Lu inclusive se agride, mutila o próprio nome, que não admite por inteiro. Quando volta a Fortaleza, cidade de suas origens, ainda suporta a violência de um emprego que detesta – mas, ao fim de um percurso em que conheceu várias pessoas e suas singularidades, vê-se pronta para experimentar uma libertação.

Libertar-se, hoje, parece bem mais desafiador. Em cinco anos a agressividade humana expandiu muitíssimo – apesar de todos os alertas, o luto, o desastre, as pessoas não se convencem a agir de modo menos predatório. A pandemia em 2020 foi um marco desse desequilíbrio de forças, e não só por sua origem, associada a explorações inconsequentes da natureza. A violência do individualismo, que se manifesta em atos mínimos (como a recusa de usar uma máscara), mostra que a proporção dos efeitos será sempre descomunal.

Uma tragédia pode acontecer não apenas através de ataques ou atentados, mas por meio da complacência. Os tipos de sofrimento se multiplicam nesta fase da história da humanidade – que talvez venha a ser conhecida como a mais paradoxal de todas, pela mistura de alta tecnologia e barbárie. E, enquanto continuarmos no esforço diário de salvação, seguem válidas as palavras de Lu, refletindo sobre o sentimento de ter escapado: “Somos todos sobreviventes de alguma coisa, eu disse a Igor e Alícia, logo que voltei da viagem. Mas recebem esse título os que estiveram por um triz – ou souberam disso, deram-se conta de estar inteiros; perceberam com espanto a própria respiração enquanto ao seu lado trouxas compridas se largavam na poeira, e eram pessoas aqueles rolos de pano nas posturas esdrúxulas, caídos como se um caminhão houvesse perdido pelo caminho a carga que ia na caçamba. Os que podem acordar nesse tipo de cenário formulam a palavra milagre, é a primeira que pronunciam, muito antes de horror, desgraça. É a palavra egoísta de quem se salvou.”

 

***

Tércia Montenegro nasceu em 1976, em Fortaleza, onde vive atualmente. É fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Seu primeiro romance, Turismo para cegos, publicado pela Companhia das Letras, foi selecionado pelo Programa Petrobras Cultural e recebeu o prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, de melhor romance brasileiro de 2015.

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