Persépolis, 20 anos

04/09/2020

 

 

Marjane Satrapi, há 9 anos: “A primeira coisa a se lembrar é que não é uma graphic novel. É um gibi. O povo tem medo de dizer essa palavra, ‘gibi’. Porque aí vem aquela imagem do homem adulto com espinhas, rabo de cavalo e pança. Se você troca por ‘graphic novel’, essa imagem vai embora. Só que não: é tudo gibi.”

* * *

Há 21 ou 22 anos, Satrapi não se chamava Satrapi. Era uma ilustradora iraniana em Paris, tentando a carreira no mercado de livros infantis e que dividia o Atelier des Vosges com vários quadrinistas. Passava horas contando aos colegas – David B., Émile Bravo, Christophe Blain – da sua vida no Irã, dos perrengues que tinha passado na Áustria, de como chegou a Paris. Eles disseram que ela tinha que transformar aquilo em quadrinhos. Colocaram Maus na sua mão.

* * *

“Passei por uma mega depressão. Aí sabe o que aconteceu? Eu estava muito deprimida, e quando eu fico deprimida eu não respiro. O ar não entra. Aí teve uma noite em que eu estava sozinha e a respiração começou a parar. Liguei pra emergência e disse: ‘Eu não consigo respirar.’ Aí vieram, me enrolaram no alumínio como se eu fosse um frango assado, me botaram um cobertor, me colocaram na maca e começaram a me descer pela escada, que era em espiral. Acabou que eu caí, desabei escada abaixo e abri a cabeça. Tiveram que dar quatro pontos! Aí minha depressão acabou. Foi tanta dor que minha respiração voltou e ali eu decidi: Vou ter que fazer alguma coisa. Aí escrevi Persépolis.”

(Em conversa com Emma Watson, quatro anos atrás.)

* * *

Há 21 anos, as primeiras páginas de Marjane quadrinista saíram no número 25 da Lapin, a revista da editora L’Association. Foi “O Véu”, o capítulo que ia abrir Persépolis. Em seguida ela resolveu que queria lançar a história completa em álbum. Aliás, decidiu de saída que seriam quatro álbuns.

* * *

Há 13 anos, o site Iran-Resist.org publicou uma “investigação a fundo sobre a identidade de Marjane Satrapi”. O texto explica de maneira bastante confusa por que “‘Marjane Satrapi’ é uma criação romântica divulgada na França para chamar atenção do público de esquerda. O inglês complicado não ajuda (a versão em francês também é sofrida).

“Satrapi” vem das “satrapias”, os nomes das províncias da Pérsia, governadas pelos sátrapas na antiguidade. Também é, aparentemente, o nome de solteira da mãe de Marjane. O nome verdadeiro de Marjane Satrapi é Marjane Ebrahimi.

* * *

“Os ignorantes eu perdoo, porque são ignorantes. Mas quem sabe que faz uma coisa errada e faz assim mesmo é dez vezes pior. Eu tentei perdoar, mas assim que comecei a escrever [Persépolis], eu percebi que estava com muito ódio, com raiva. Eu queria matar todo mundo! Todo mundo tinha que ser castigado.

Aí escrevi umas páginas e falei: Porra, eu sou igualzinha a eles. Exatamente que nem eles. E aí eles venceram: gostei do jeito deles. Então decidi tirar um tempo, esfriar a cabeça e entender. No instante em que você entende uma coisa, não é que você justifica, mas você consegue analisar melhor.

Por isso que não foi uma autobiografia comum. Geralmente, autobiografia é aquele livro que você escreve porque odeia sua família, seus amigos e não sabe como dizer pra eles.”

(Na conversa com Emma Watson, quatro anos atrás.)

* * *

Há 20 anos, a L’Association era uma editora pequena para os números do mercado franco-belga de HQ. Aliás, foi uma editora fundada para ir contra o modelo milionário do mercado franco-belga, dando mais liberdade (e percentual das vendas) para os autores. Eles nem imprimiam código de barras nos livros, porque achavam muito comercial.

Persépolis bagunçou tudo. A tiragem do primeiro volume foi de dois mil exemplares. Em 2006, antes do filme, os quatro volumes já tinham vendido mais de um milhão de cópias. E o livro já tinha saído mundo afora, inclusive no Brasil.

* * *

Seis anos atrás, um pai do estado do Illinois entrou com um pedido de interdição de Persépolis como leitura para o ensino médio. Disse que as imagens de tortura eram muito fortes para os estudantes e quis saber “por que mandaram ler um livro sobre muçulmanos perto do 11 de setembro”.

No mesmo ano, Persépolis chegou ao segundo lugar entre os livros mais contestados em bibliotecas, segundo a Associação Americana de Bibliotecas.

Há cinco anos, uma estudante universitária da Califórnia propôs “erradicar” Persépolis e outros três quadrinhos da lista de leituras obrigatórias de uma cadeira. “Eu estava esperando Batman e Robin, não pornografia”, disse a aluna.

Do professor e pesquisador Noah Berlatsky, há sete anos: “Tal como o regime iraniano que Satrapi descreve, onde estudantes de arte só podem fazer desenho de observação com mulheres usando um xador que as cobre da cabeça aos pés, parece que a meta do sistema educacional norte-americano é a ignorância proposital.”

* * *

Há 19 anos, com o primeiro volume de Persépolis, Satrapi levou o Alph-Art coup de coeur, o prêmio de revelação no Festival d’Angoulême. No ano seguinte, com Persépolis vol. 2, levaria o Alph-Art du scénario, o prêmio de melhor roteiro.

Há 15 anos, Satrapi receberia a honraria francesa de Chevalier des arts et de lettres. Cinco anos atrás, ela subiu um grau: agora é Officier des arts et de lettres.

Há 13 anos, Persépolis, o filme, ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes. Há 12 anos, o César de melhor adaptação.

No ano passado, Persépolis entrou na lista do Guardian de melhores livros deste século.

* * *

Há 11 anos, dois artistas iranianos remixaram Persépolis para fazer Persepolis 2.0, um quadrinho de dez páginas que contestou a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad no Irã. O projeto teve a benção de Satrapi e ainda se encontra na internet.

* * *

Há pouco mais de um mês, falando de Radioactive, o filme sobre Marie Curie que ela dirigiu (baseado no quadrinho/livro ilustrado de Lauren Redniss, a sair pela Quadrinhos na Cia.):

“Se você é a única pessoa no mundo que ganhou dois Nobel, em duas áreas distintas, não é porque você ficou cozinhando torta e biscoito e foi boazinha com todo mundo. Você tem que ser uma pessoa focada. Tem que passar o tempo todo trabalhando. Aí não sobra tempo pra muita coisa. Por exemplo: você não tem tempo pra  se importar com o que os outros pensam de você, se gostam de você ou não. E aí você não é simpática. E é exatamente isso que eu amo nela: ela não quer ser amada.”

* * *

Há um mês, também em entrevista sobre Radioactive, respondendo sobre o que vai fazer a seguir: “Não sou uma pessoa muito sociável. Gosto das pessoas principalmente quando não tenho que vê-las com frequência. Depois de fazer um filme, preciso muito de um momento só comigo, para poder pintar, para pensar na minha próxima exposição. Mas também preciso de tempo para absorver informação nova, ver coisas novas, ter sensações novas. Depois de um filme, eu deixei tudo que eu tinha no filme. Se você bate no meu peito, está oco, não tem nada aqui dentro. Eu tenho que me reabastecer para dizer algo de novo. E é aí que eu decido o que vou fazer.”

* * *

Persépolis, volume um, chegou nas livrarias da França em novembro de 2000.

 

***

 

Escrevi um livro. Ou melhor, estou escrevendo um livro desde 2010 – aqui mesmo, nestas colunas para o Blog da Companhia. Uma coletânea com as primeiras 50 vai ser lançada este ano, com o título Balões de pensamento (editora Balão Editorial). As colunas foram revisadas, em alguns casos foram atualizadas e vêm com ilustrações inéditas de cinco autores do quadrinho nacional.

Balões de pensamento sai em dezembro. Você pode saber mais e pré-adquirir seu exemplar na campanha de financiamento coletivo em https://www.catarse.me/baloes1.

 

***

 

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

 

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog