Pinos jogados para cima

Carol Bensimon

George Saunders, além de um excelente escritor, parece a melhor pessoa para falar sobre o ato de escrever. Um vídeo que assisti no ano passado me deu arrepios de empolgação. Gosto das comparações que ele tece ao longo dos sete minutos – da frase de abertura, passando pela caixa-preta, passando pelo encontro amoroso – mas, mais do que isso, adoro a ideia de que, quando escrevemos ficção, o que ocorre é um sensato balanço entre precisão e descontrole. Estou dizendo agora com minhas palavras, porque creio que Saunders jamais mencionou “precisão" ou “descontrole” no vídeo, mas esse contraste é obviamente entendido ao longo de sua argumentação, que tanto diz que o planejamento obsessivo de uma história pode ser um perigo quando analisa obsessivamente, a título de exemplo, a frase “Frank é um idiota” (até que, pouco a pouco, o escritor a transforme em outra coisa).

Saunders tem 58 anos e acaba de lançar seu primeiro romance. Em décadas de carreira, foi sempre identificado como um autor de contos, e devo dizer que ler seu Dez de dezembro me fez acreditar de novo nas narrativas curtas (antes de ser apresentada a George Saunders, Alice Munro e Ali Smith, passei por um período de desgosto, não há por que negar). Agora vem o romance, que envolve Abraham Lincoln e um punhado de fantasmas; publicado semana retrasada no The Guardian, esse artigo de Saunders fala sobre o processo criativo de sua nova obra, Lincoln in the Bardo, além de nos presentear de novo com ótimas reflexões sobre o processo de escrita. Como eu disse antes, o cara é uma excelente pessoa para isso (aqui vou descontar o fato de que o artigo cita, em determinado ponto, a frase “Bob é um idiota” e, ops, tenho a sensação de que já vi isso em algum lugar).

Não há problema nenhum, de qualquer maneira, no fato de uma pessoa ter crenças fortes. E, ainda que nenhum método criativo possa servir para todos os escritores do mundo, o que Saunders diz 1) me parece especialmente lúcido e 2) guardadas as proporções, vai ao encontro do que eu penso (estou me chamando de lúcida, desculpa).

Por exemplo, presente tanto no vídeo quanto no artigo está a ideia de que os detalhes de uma única frase podem mudar os rumos de uma trama; mais do que isso, que os detalhes de uma frase muitas vezes são escolhidos de forma aleatória, ou essencialmente pelo jeito que soam, ou porque dar uma esposa morta para Frank, o idiota, e fazê-lo além de tudo surtar com uma barista parece mais divertido do que só chamá-lo de idiota. Escrever que Frank é viúvo, aliás, vai levar a um monte de frases explicando isso, assim como o surto provavelmente tomará um bocado de páginas. Dependendo de como essas coisas estiverem encadeadas, haverá uma relação subentendida entre esses dois fatos. Fez-se a mágica.

Escrever uma narrativa, segundo Saunders, é como jogar pinos de malabarismo para cima, e a diferença essencial entre produzir um conto ou um romance é que, no romance, há muito mais pinos para manejar. O terço final de um romance seria o momento em que os pinos começam a cair, sem que o escritor, o pobre recebedor de pinos, saiba exatamente como isso vai acontecer. Não há um componente místico nisso – do tipo “os personagens fazem o que querem agora” –, mas com certeza é uma prova de que, por mais que a gente planeje, nunca sabemos, de fato, o que estamos escrevendo.

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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 
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