Por onde escapam os fantasmas

09/09/2020

Boris Kustodiev, 1905. Museu Estatal Russo, São Petersburgo.

 

 

Na galeria de personagens solitários da literatura, há sempre um lugar reservado para os copistas e seus parentes de ofício e, entre eles, para Akáki Akákievitch – aquele que traz no nome a gagueira e o instinto de copiar. Personagem central de “O capote”, conto de Gógol publicado em 1842, Akáki é contemporâneo de Bartleby, da novela homônima de Melville, surgida uma década depois. A história de “O capote” se passa em São Petersburgo e tem enredo simples. Proveniente de uma família de copistas, Akáki (nome equivalente a “Acácio”, que quer dizer “sem maldade”) é funcionário subalterno da burocracia czarista. Um indivíduo sem ambições, dedicado à tarefa de copiar. Diante do frio cortante e já não tendo mais como remendar seu capote, Akáki acaba aceitando a proposta do alfaiate para costurar-lhe um novo. Certa noite, ao voltar de uma festa, é assaltado e surrado; levam-lhe o casaco, que havia custado todas as suas economias. Em vão, ele busca a ajuda das autoridades para recuperá-lo, mas é tratado com desdém. Transtornado com a perda, adoece e sucumbe. Ao final, em um lance inesperado, retorna como fantasma na cidade.

Na história de Akáki, que sente frio, que morre de humilhação e de frio, quase nada acontece, e o pouco que acontece é sempre deformado, entorpecido, vertiginoso. Akáki é uma criatura obsessiva, mas humilde, resignada. É dolorosamente cômico, e servil. Akáki é um funcionário qualquer – é ninguém. Em certa medida, poderia ser comparado a Bartleby, mas, ao contrário deste, que se nega a copiar, que faz da recusa uma forma de resistência, Akáki tem na cópia um vício, e não consegue deixar de cumprir o que lhe cabe: prefere sempre copiar. Exatamente aí está a radicalidade de Akáki: na sua subserviência e resignação. É humilhado, ofendido, mas comporta-se como uma espécie de servo divino, austero e fraterno, resistente à acídia. Sua única tentação será o capote novo, que o desvia e perturba. Paira sobre Akáki Akákievitch a sombra de um monge copista – mil anos de monastérios ecoam na sua figura.

Quando a devoção a um ofício é extrema, ela pode persuadir o corpo com seus mecanismos. Tal como um lenhador que, com o tempo, absorve no semblante o silêncio da madeira, Akáki carrega o sotaque da cópia na própria língua. Sua fala é gaguejante, sua sintaxe é esburacada. Expressa-se usando preposições e advérbios, anacolutos sem sentido; suas sentenças são reticentes e inacabadas. Como o capote velho, sua linguagem é esfarrapada e puída. Penso em um monge em seu scriptorium: o copista ideal, que nunca se distrai. A frase entra pelos seus olhos, uma voz interior a repete, a mão a transfere para o papel. De tanto copiar, o sentido lhe foge, a palavra perdeu o vínculo com a coisa. Assim parece o transtorno de Akáki: a mecânica da cópia age na musculatura da fala e impõe a ela o seu ruído. Não é um sintoma, é a própria língua do ofício falando em seu corpo. Nabokov chamou a atenção para “os vazios e buracos negros” do texto de Gógol. Em alguma medida, estaria o narrador do conto afetado pela gagueira de Akáki? Se o estilo é contagiante, pode atingir inclusive o leitor.

Distúrbios como os de Akáki Akákievitch não são incomuns entre os que transcrevem – talvez pela intimidade com a língua, por terem que se dobrar sobre ela. É algo que na verdade os irmana e ajuda a imaginá-los como uma comunidade. Akáki gagueja, Bartleby repete uma fórmula. Em O castelo, romance de Kafka, os ajudantes de K. gritam e gesticulam atrás de uma vidraça, mas é impossível entender suas palavras. Em “O imortal”, conto de Borges, um antiquário que atravessou os séculos (e assim foi revisando sua biografia) tem a aparência cinza e terrosa, fala “com fluência e ignorância” várias línguas. Bouvard e Pecuchet, a dupla de escriturários megalomaníacos de Flaubert, sofrem de uma literalidade infantil; a cada dia, são acometidos por uma afetação diferente. A lista é extensa, e poderia incluir personagens de variados cantos e tempos, como a datilógrafa Macabéa, de A hora da estrela, de Clarice Lispector (que “jamais disse frases” e “gosta de ruídos”), o Sr. José, um auxiliar de registro civil de Todos os nomes, de Saramago (que, obsedado por um verbete, peregrina atrás de uma mulher desconhecida), e ainda, claro, o amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos (que reconcilia as notas do seu diário com o estilo da repartição). Lembro-me dos alquimistas, penso na violência e no risco de seus materiais. Se os alquimistas se intoxicam com o peso do mercúrio ou com o excesso de enxofre, e seus cabelos caem, sua pele muda de cor, os copistas às vezes são envenenados pelas palavras.

Profissionais do texto habitam um território fronteiriço. Copiando ou retificando, revisando ou traduzindo, operam naquela faixa da língua em que as notas e os resíduos, e também as vozes, costumam se misturar. Nas margens, nos rodapés. No caso de Akáki Akákievitch, o desenho da letra esgarça a semântica, as palavras retomam sua energia silábica e rítmica. A língua se mostra em seu estado primitivo. É fácil ver aí, nessa existência medíocre, a falência da comunicação, a idiotice, a inaptidão para o raciocínio. Mas é nesse campo de recuo, também, que às vezes se encontra um fermento criativo e poético. O chão das palavras, onde a criança balbucia e o tradutor tateia o outro idioma. Talvez o copista mais simplório aponte o lugar a que todo escritor está condenado a retornar – o de iniciante, onde as coisas ainda são pequenas e sem pretensão.

Akáki vive em isolamento, tem aversão ao movimento e ao convívio. Quando sai de casa, entretanto, quando, forçado pela novidade que repudia, caminha pelas ruas, captamos com ele o rumor de São Petersburgo. Da periferia deserta à avenida das lojas e das luzes, percebe-se o ranger dos trenós e das carruagens, o tumulto de pedestres, a fumaça, o desfile de vestidos. Acompanhando os passos de Akáki, sentimos com ele o desconforto desse choque, o desejo de voltar correndo para o casulo. Sentimos, também, e em cada linha, a respiração de Kafka, pequenos sinais queridos de seu mundo, uma rajada de vento, saltos bruscos pela calçada, a baforada de um cavalo, um riso desengonçado, as solicitações inúteis e sem fim. O fantasma de K. duplica o de Akáki; os dois são o fantasma de uma única letra. O final da história não podia ser outro: inacabado como o pesadelo.

Há algo de premonitório em “O capote”, o sopro gelado de uma tempestade que está por vir, e que agora soa como óbvia. As vertigens urbanas, o desespero das ditaduras, a dificuldade de entender e comunicar. Akáki Akákievitch é, sem dúvida, um desses personagens poderosos capazes de encenar a passagem de um tempo a outro, um dos primeiros, talvez, a incorporar de uma só vez a solidão de duas eras, duas tão vastas solidões: a velha solidão monástica, medieval – daqueles que copiam –, e a solidão da grande cidade – labiríntica, opressiva, moderna. Essa é uma das chaves da sua permanência.

Mas há algo além, algo que ultrapassa o maquinário pesado do século 20 e alcança a era dos computadores e da internet. Imagino como, no giro das noites, um copista que ficou para trás pode continuar o seu trabalho, em como se abre a porta do tempo, a porta enferrujada por onde escapam os fantasmas. Um copista já não está mais em seu claustro – sua cela –, mas diante de uma tela – um celular. No exercício de copiar e colar, uma enfermidade do século 21, somos todos Akáki Akákievitch. Ele ainda é capaz de assombrar.

 

***

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

Marcílio França Castro

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

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