Por Camilo Solano
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É preciso certa coragem para escancarar a porta da intimidade, da vida pessoal, do jeito mais cru e sincero possível. Não só no que diz respeito a excentricidades sexuais. No caso de Robert Crumb, é corajoso também mostrar que o dia-dia de um artista considerado o “Brueghel do Século XX” é bem parecido com o de qualquer um.
“A vida ordinária é uma coisa muito complexa”, já disse Harvey Pekar. Em outras palavras, não deve ser fácil se expor a ponto de desmitificar o status de “Deus” ao mostrar uma vida simples e cheia de, digamos, peculiaridades.
Desenhados um para o outro é a coleção definitiva das compilações de Dirty Laundry; histórias em quadrinhos feitas a quatro mãos pelo casal Aline e Robert Crumb. Também com algumas participações da filha Sophie.
Conheci Robert e Aline em 2010 quando vieram para a Flip, em Paraty. Apesar de não terem conversado muito com a mídia, eles se mostraram abertos quando tive a oportunidade de falar com eles. Trocamos cartas desde essa época. Com o tempo, fui descobrindo gostos em comum. Por exemplo, Os três patetas. Passei minha infância toda assistindo Moe, Larry & Curly (ou Shemp) se estapearem. Crumb também.
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Aline e Robert podem parecer a dupla mais pervertida do mundo, mas são as pessoas mais gentis que conheço. São, no entanto, autênticos provocadores. Eles possuem essa necessidade insaciável de provocar o leitor. De cutucar a ferida, custe o que custar. Seja quem for.Quem tem mais coragem nessa história toda não é Robert, mas sim Aline, que enfrenta sem medo os fãs malucos e obcecados pelo trabalho do Keep On Truckin’ Crumb. O desenho de Aline é cru e ela sabe disso. Robert mesmo tira sarro do estilo dela. E ela diz ter sido chamada por um leitor de “parasita sem talento” e disse que gostou tanto do nome que seria o título da sua próxima história em quadrinhos.
Ao ler Desenhados um para o outro, percebe-se que Aline é a alma das histórias. O humor dela é ácido e ainda mais ferino do que o de Robert – ele costuma dizer, inclusive, que com o tempo, é possível que a história veja que ela como uma artista muito mais interessante do que ele próprio. E ela se aventura muito mais. Enquanto Robert se preocupa com o claro/escuro da técnica de hachura, aproveitando para reverenciar suas influências como Wally Wood, Jack Davis e Will Elder, Aline de repente aparece vestida com uma roupa completamente diferente do que estava no quadro anterior e com um novo penteado também. E então ela diz: “É que mudou o dia + eu estou com outra roupa na vida real... Porque eu não devia desenhar assim?”.
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É um casal que se diz velho e antiquado, que critica a modernidade, mas sempre se mostram muito preocupados com o futuro. Sempre me perguntam sobre a crise pela qual o Brasil está passando e como eu estou me virando, por exemplo.
Sem medo de soar repetitivo, acho os dois muito corajosos. Eu, como artista sei muito bem de como preciso de meus momentos de solidão para produzir, e sei também das dificuldades que é fazer trabalhos em parceria. Um casal sendo cúmplice de uma obra por mais de quarenta anos, fazendo juntos histórias em quadrinhos, eu não sei que nome dar a isso, talvez a palavra seja amor. Deve ser algo indecifrável.
A última coisa que gostaria de dizer é que na história “Não fale de boca cheia”, quase no final do livro, em um dado momento Crumb vai e come um pudim de arroz e diz ser a coisa mais deliciosa que já comeu na vida. Pudim de arroz?
De todas as coisas que li nesse livro o que mais me chamou a atenção foi esse pudim. Ao falar com o Crumb sobre o tal pudim, ele falou que alguém da família Crumb em Minnesota fazia e era muito gostoso. Falei que nunca tinha comido. Só pudins de pão e de leite condensado. “Eu também já comi esses”, ele falou. “Mas você devia escrever sobre isso no seu texto, então... Não se sinta a obrigado a escrever nada com seriedade, como um crítico. Você é um artista, escreva sobre o pudim de arroz.”
Encontrei algumas receitas de pudim de arroz. Nunca gostei de arroz doce. Mas o pudim deve ser bom. Não quero fazer propaganda gratuita, mas o pudim de leite da Cantina Gigio é um dos melhores que já comi (se eles me derem um pudim por causa desse “merchan”, eu aceito). Esses dias numa hamburgueria árabe vi que tinha um pudim de pistache. Não comi. Será que é bom ou é gourmet hipster cheio de frescuras demais? Os Crumb são, de longe, minha maior inspiração e eu sou muito grato por viver na mesma época que eles. Isso tudo para dizer que Desenhados um para o outro é um livro imprescindível para qualquer pessoa que curta quadrinhos. Até a próxima.
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Camilo Solano é designer e autor de histórias em quadrinhos. Publicou Semilunar pela Balão Editorial; sua publicação independente Desengano teve o prefácio assinado por Robert Crumb. Para acompanhar os seus próximos projetos, visite o seu Instagram @camilo.solano e o blog http://camilosolano.wordpress.com/