Quadrinho também é coisa de criança

11/03/2020

Space Dumplins, de Craig Thompson

 

Há três anos, em janeiro de 2017, o New York Times cortou as listas de quadrinhos mais vendidos na sua famosa e vetusta seção de best-sellers do New York Times Book Review. Eram três listas: Hardcover Graphic Books, Paperback Graphic Books e Manga. Durante oito anos, desde 2009, muito autor de HQ pôde colocar “da lista de autores mais vendidos do Times” em sua notinha biográfica.

As listas de quadrinhos do NYT chegaram um pouco tarde para reconhecer o fenômeno que se armava nas livrarias dos EUA – e daqui – desde a virada do século: quadrinhos, quadrinhos, cada vez mais quadrinhos, em forma de livro, ganhando prateleiras. E vendas. Chegaram com esse nome um tanto estranho, graphic books – não comics, nem graphic novels – mas estavam lá. Dá um certo prestígio ter sua própria lista de mais vendidos no Times, e quadrinhos estão sempre em busca de prestígio, equiparação, legitimidade.

E de vendas. Porque as listas tinham impacto real no bolso das editoras: livrarias e bibliotecas pautavam compras pelo que viam no Times. O site The Beat chegou a cogitar que a queda nas vendas de quadrinhos em livrarias em 2017 se devia ao fim das listas de best sellers no jornal.

Em outubro último, surpresa: o Times voltou a publicar uma lista de quadrinhos mais vendidos. Agora é uma lista só, chamada Graphic Books, que compila todos os gêneros e segmentos que chegam nas livrarias, misturando vendas em papel e digital, e sai uma vez por mês. É só conferir aqui.

O principal motivo para o fim das listas em 2017 provavelmente foi corte de custos no jornal. A volta, no ano passado, provavelmente foi uma levantadinha no orçamento. (Culpa do Trump, que fez mais gente comprar o “mentiroso” New York Times?) Mas tinha mais uma justificativa: Raina Telgemeier ia lançar uma nova HQ.

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Raina Telgemeier é ao mesmo tempo a quadrinista mais vendida dos EUA e a quadrinista mais desconhecida dos EUA. Desconhecida, no caso, entre os ditos Entendidos de Quadrinho.

Desde Sorria, seu primeiro trabalho solo, sua carreira teve um crescimento orgânico e de fazer qualquer colega babar. Sorria saiu com tiragem de 20 mil exemplares em 2010. A sequência, Irmãs, de 2014, saiu com 200 mil. Fantasmas, de 2016, com 500 mil.

Coragem, seu lançamento do ano passado, começou com 1 milhão de cópias. Que estrearam, como esperado, no topo da nova lista de Graphic Books do Times e, em cinco meses, ainda não desceram da primeira posição. Aliás, na semana do lançamento, Coragem ficou em primeiro lugar na lista geral de livros mais vendidos do Times, à frente de Stephen King, Malcolm Gladwell e Margaret Atwood.

Segundo sua editora, a Scholastic, Telgemeier tem 18 milhões de livros em circulação nos EUA. Fora as traduções para 22 idiomas. Quem lê Sorria, Irmãs, Coragem e os outros são meninas na faixa dos 8 aos 12 anos. As histórias tratam de usar aparelho nos dentes, convivência entre irmãs, colégio, amizades que vêm e que vão e, no caso de Coragem, problemas estomacais e ansiedade. A maioria é autobiográfica.

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Tal como Harry Potter puxou um segmento enorme no mercado editorial infanto-juvenil, Telgemeier puxou uma transformação no mercado de quadrinhos. Na mesma semana em que Coragem estava no topo da lista geral de mais vendidos do Times, o sétimo volume do Homem-Cão estava em terceiro. A série que Dav Pilkey produz em ritmo acelerado – oito volumes em quatro anos – sai com tiragens de cinco milhões por volume, para público um pouquinho mais novo.

Não são só Telgemeier e Pilkey. Eles nos chamavam de inimigo, o relato do ator George Takei (com Justin Eisinger, Steven Scott e Harmony Becker) sobre os campos de concentração para japoneses nos EUA, e Adventure Zone, adaptação de um podcast sobre RPG, também apareceram na lista geral do Times antes de o jornal voltar com a lista de Graphic Books. Editoras tradicionais de quadrinhos, como a DC, estão criando linhas de respeito para captar o público a partir dos 7 anos – porque sabem que seus gibis tradicionais não atraem quem tem menos de 25. Ou 35.

Em entrevista recente, Craig Thompson diz que pensou Space Dumplins quando viu uma criança lendo Habibi – e ficou preocupado porque, primeiro, não achava que era uma leitura apropriada para crianças e, segundo, porque não tinha nenhum quadrinho seu que pudesse dar aos pequenos. “Já era hora na minha carreira de retribuir ao meu eu infantil, que se apaixonou por essa mídia aos nove anos”, declarou.

Enquanto no Brasil Mauricio de Sousa nunca deixou os quadrinhos se afastarem do público infantil, nos EUA a renovação de leitores de gibi andava caótica. Por lá, nem a potência Disney investe significativamente em quadrinho infantil. “Tem toda essa indústria, a dos quadrinhos, que passou tantas décadas brigando pra dizer ‘não somos só pra criança’”, Raina Telgemeier declarou em entrevista à Vulture, “que chegou numa retificação além da conta: em que não se fazia mais nada pras crianças.”

O movimento do mercado de dar prestígio adulto ao quadrinho nas últimas décadas foi importante, mas as vendas em queda talvez mostrem que a tendência chegou no limite. Os leitores envelheceram e não se renovaram. Esta virada em favor dos leitores de menor idade era mais do que necessária, mas não podia ser inventada pelos editores. Agradeça a Telgemeier, Pilkey, Thompson e outros por fazer obras que convenceram as crianças a voltar a ler gibi. Se começarem por estes, é possível que elas leiam quadrinhos pelo resto da vida.Se começarem por estes, é possível que elas leiam quadrinhos pelo resto da vida.

 

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

 

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