Reencontrando Janis: A vingança da menina triste

Ana Maria Bahiana

Por Ana Maria Bahiana

5988738442_da018bdf44

Ao contrário de muita gente da minha geração (e anteriores), nunca fui fã de Janis Joplin. Nada nela me atraía musicalmente, meus ouvidos ainda cheios de descobertas recentes que faziam mais sentido para mim -- Nina Simone, Billie Holiday, Bessie Smith, Ma Rainey, Big Mama Thornton, Etta James, Alberta Hunter. Eu me lembro de pôr Cheap Thrills na vitrola -- portátil, daquelas que você tinha que clicar o braço para fazer o prato rodar -- e ir pulando as faixas depois de um minuto. A voz me soava forçada, a banda, assim-assim. Gostava da capa, do imortal Robert Crumb. Parei o exercício de pular faixas apenas com “Summertime”, a única que ouvi até o fim (e que continuaria a ouvir até o fim, em companhia de outras em que Janis, para os meus ouvidos, soava mais como ela mesma: “Me and Bobby McGee”, “Mercedes Benz”).

Mas uma coisa sempre me fascinou em Janis: ela mesma. Que mulher era essa, eu pensava, que abria uma clareira tão grande naquele cerradíssimo Clube do Bolinha que era a cena de rock dos 1960-70? Que se apoderava do palco apenas com seu corpo e sua voz e ocupava todo o seu espaço -- quando a vi no documentário Monterey Pop, não me importava o que e como cantava, era ela ela ela que tomava a tela toda, desarmada de guitarras e quetais, apenas ela, como que nua e gigantesca naquele palco, sobre aquela plateia, naquele lugar, no mundo inteiro. Blues cósmicos.

Lembrei de Janis por conta de outro documentário, Janis: Little Girl Blue, de Amy Berg, que veio direto do festival de Toronto 2015 para a Netflix. Baseado em grande parte na biografia de Janis do mesmo nome, escrita por sua irmã Laura (que está no filme, juntamente com o irmão caçula, Michael), Little Girl Blue não evita mas também não se detém sobre as drogas que, em última análise, levariam Janis aos fatídicos 27 anos. É um contrabalanço à primeira e única biografia que tínhamos ao nosso alcance nos 1970, Buried Alive, de Myra Friedman, que, escrita ainda à sombra da morte trágica e súbita, concentrava-se com quase fúria no assunto, e condenava veementemente a cena da contracultura como a facilitadora, quiçá a responsável direta pela overdose fatal.

E no entanto, com a vantagem do tempo e o equilíbrio dessas duas visões, o que fica claro é exatamente aquilo que ao mesmo tempo desafiou e tornou Janis Joplin grande: a pessoa que ela era, e a persona que ela inventou para resolver sua questão essencial -- a de pertencer, fazer parte, ser incluída; a questão da identidade, de ser fiel a quem se é, tão essencial hoje, era o que movia Janis, o que a frustrava e desafiava e o que, em última análise, transformou-a naquela deusa descabelada e poderosa que, com apenas corpo e voz, ocupava cada centímetro do palco, do holofote, da fama até então povoada pelos machos, exclusivamente.

Descobrir, através do documentário e do livro de Laura Joplin, o quanto a vida de Janis foi sobre autodescoberta e aceitação me deu enormes chaves para entender um monte de coisas sobre ela, sobre a época, e sobre mim mesma -- que, como ela, lutava tanto para descobrir quem eu era quanto que lugar haveria para mim no mundo.

A descoberta da voz, física e metaforicamente, veio tarde, depois de uma gangorra, tão conhecida minha, entre implorar desesperadamente para ser aceita e ostentar a rejeição com orgulho. Imediatemente antes e logo depois de Janis achar seu modo pessoal de expressão, aconteceram todos aqueles rituais de separação: as tentativas frustradas de ser como os outros, humilhações na escola e na faculdade, num último esforço para ser como o padrão da família e da cidade de Port Arthur, Texas, um noivado abortado.

Quando Janis chega a San Francisco, em 1966, ela já sabe quem ela não é. San Francisco e a efervescência dos 1960 lhe diriam quem ela era. Na cidade, na cena musical, na energia da mudança ela se sentiria aceita, afinal, e ao se sentir aceita seu poder emerge. Em Port Arthur e em Austin -- onde tentou completar seus estudos -- ela era alijada porque queria ser “um dos rapazes”. Em San Francisco ela era quem ela queria ser, moça e rapaz e nem um nem outro, apenas ela, aceita, completa, a voz, a energia, a potência, a alma enfim plena, nem que fosse por aquelas horas no círculo sagrado do palco, onde seu poder podia se manifestar, livre e inteiro. Tudo estava vingado, tudo estava redimido e transformado.

E ao ser incluída, afinal, Janis transcendeu. Sua voz liberou outras vozes e sua presença abriu essa trilha que virou avenida, por onde tantas outras mulheres passariam e ainda passam, donas de si, donas do palco, donas de suas vozes, protagonistas de suas histórias.

A história de Janis não teve um final feliz. Mas esse, quem sabe, é o preço de tê-la escrito tão intensamente na primeira pessoa.

 

* * * * *

 

Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do BrasilFolha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964(Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Twitter — Facebook