“Isso foi em 1976. Há 45 anos. Mas não parece”, escreve Heloisa Buarque de Hollanda na apresentação da nova edição de 26 poetas hoje, antologia que marcou os anos 1970. Afinal, o que mudou quarenta e cinco anos depois? E quais poemas seguem atuais em 2021?
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Semana 3: Charles, Bernardo Vilhena e Leila Míccolis
Falar sobre um acontecimento, por mais célebre que tenha sido, depois de quarenta e cinco anos, é um desafio para qualquer memorialista que se preze, ainda mais considerando a quantidade de parangolés alucinógenos e cataclismos etílicos que abalavam aquela época de trevas, na qual poetas e malabaristas arriscavam suas carótidas ao encarar matilhas de meganhas sanguinários avessos a tudo que fosse alegria e liberdade e ousasse gritar palavras de ordem contra o Estado repressor, sinistro e assassino. Aos que não foram apresentados, essa era a época da tal ditadura militar que agora essa corja institucional prefere renomear em cores suaves de aquarela como “movimento de 1964” ou então “intervenção democrática”. Porra nenhuma! Era ditadura mesmo. Mas, para não fazer desfeita aos nossos editores, vamos fazer um esforço de memória, afinal, apesar dos pesares, recordar é viver.
Bem, foi em meio a esse pandemônio repressivo, capitaneado pelo funesto Garrastazu, que Heloisa Buarque de Hollanda resolveu juntar uma turba de insensatos de várias vertentes e fazer uma antologia de poetas contemporâneos. Como toda antologia, não foi uma unanimidade. Lembro que mesmo dentro da lendária Nuvem Cigana, da qual fazia parte, havia discordâncias se deveríamos participar de um produto de uma editora comercial já que nosso movimento era justamente contra o sistema e assim lançávamos nossas publicações. Resolvemos de forma democrática. Os poetas que quisessem participar participavam, quem não quisesse ficava de fora. E o livro 26 poetas hoje foi lançado numa noite memorável na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, com uma grande festa como nós sabíamos fazer desde as famosas Artimanhas, marca registrada da Nuvem Cigana. Há algumas fotos que documentam o evento e um filme em super oito do Luiz Alphonsus de Guimaraens que ainda pode ser encontrado por aí nessas plataformas de compartilhamento de vídeos.
O que provavelmente ninguém imaginava era que esse livro fosse chegar a uma nova edição em 2021, ainda despertando algum interesse. Muitos amigos que participaram dessa empreitada já saíram da vida, mas, certamente, entraram para a História.
Charles Peixoto
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26
A antologia recebeu uma grande influência da comemoração do cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Houve uma intensa reedição de livros e lançamento de filmes como Macunaíma, de Joaquim Pedro, e o curta metragem Klaxon, de Sérgio Santeiro — ambos, não por acaso, narrados pelo poeta Tite de Lemos —, artigos e edições especiais em revistas e jornais. Tudo contribuía para avivar a memória, incentivar a pesquisa, buscar raridades.
Em plena ditadura militar nós discutíamos o que era modernidade. Existia uma frase atribuída a um influente psicanalista — Wilson de Lyra Chebabi — que dizia “é melhor você invadir o mundo antes que o mundo invada você.” E isso, de uma certa maneira, refletia a ideia da Semana de Arte Moderna. Depois de sermos invadidos pelo mundo dito civilizado, a geração dos modernistas resolveu invadir o mundo e mostrar o Brasil profundo, misterioso, inexplicável. Eu tangencio esse tema no poema intitulado À sombra de um pé de Pau Brasil.
A comemoração da Semana foi um sopro de ar fresco. Para alguns de nós, a modernidade parecia ter começado em 22 e encerrado com a inauguração de Brasília. Porque em 64 teve início a ditadura militar e um violento estado policial que atingiu não só a luta armada como também a luta desarmada. Nesse novo Brasil não cabiam todos os brasileiros.
Minha resposta foi o poema Vida bandida, escrito para o filme Rio de Janeiro – Brasil do artista plástico Luiz Alphonsus, exibido na Bienal de Paris de 1975.
Heloisa Buarque desenhou uma antologia que permanece atual às vésperas do centenário da Semana de Arte Moderna.
Bernardo Vilhena
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“Mulher não escreve assim”, “Isto não é poesia”, “Poesia é a procura do belo, e não esta malcheirosa catação de lixo...”. Era 1976: repressão feroz, ditaduras muitas. De todos os lados. Eu acabara de lançar com Franklin Jorge o Impróprio para Menores de 18 Amores e o livro suscitara uma enxurrada de apreciações depreciativas, verdadeiros ataques que mais pareciam fuzilamentos públicos. Por sorte minha, Heloísa comentara com André Lázaro "que estava sentindo falta de um trabalho mais impertinente assinado por uma mulher"; ele me conhecia, pois meu marido era primo dele, e prontificou-se a levar poemas meus para Heloísa ler – eis como acabei sendo uma dos 26. No prefácio que Heloísa escreveu para o meu Sangue Cenográfico (de 1997), consta a impressão que ela teve na época ao ler meus versos: "Fiquei agradavelmente surpresa com aquela poesia desconcertante que André me entregara assim como quem não quer nada. [...] Leila Miccolis rasgava a fantasia e se expunha de forma quase inconveniente, desenhando com pinceladas fortes os textos e subtextos da experiência social feminina destas últimas duas décadas [...] uma geração de poetas mulheres que começava a interpelar, destemida, os modelos do que se conhecia até então como sendo a única e boa poesia brasileira. [...] Leila, sem dúvida, produziu uma das primeiras obras na poesia brasileira, assumidamente feminista e assumidamente libertária". Desde então, as pedradas dos críticos progressivamente diminuíram, e os elementos mais marcantes das propostas estéticas da Geração 70 (a informalidade, a ironia, a revisão dos valores cotidianos, o desmascaramento da hipocrisia e da falsa moralidade) foram como que se enraizando na consciência das mulheres, ao mesmo tempo que ampliavam o campo de atuação da poesia, ao introduzi-la nos debates paralelos dos quais ela nunca participara antes. Hoje, vemos as mesmas tendências poéticas tão malvistas e malquistas ontem ganhando concursos nacionais, reinando em todas as redes sociais, e-books e livros impressos, sorrindo, ou talvez mostrando seus dentes (afiados) aos que não acreditaram nelas.
Leila Míccolis
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Leia também os relatos de Flávio Aguiar, Luis Olavo Fontes, Chacal, Afonso Henriques Neto, Secchin e Zuca Sardan.