Ser escritora, minimalista e ter livros

30/11/2020

Conheci o Minimalismo como “modo de vida”, “filosofia de vida”, há quase três anos. Refletia sobre os gastos que tinha todos os meses, percebendo que grande parte deles vinha de consumo desnecessário. Gostava de ter variedade de pratos, canecas, taças; gostava de caderninhos para escrever; de sapatos diferentes (todos pretos); de produtos para cabelo que chegavam pela influência de propagandas e resenhas de youtubers.      

Olhando para todas aquelas coisas, tirando uma por uma de seus lugares (que na verdade nem estavam definidos e organizados), muita coisa teria a data de validade estourada muito em breve. Os pratos coloridos e bonitos? No dia a dia, eu usava quase sempre os mesmos e só quando recebia visitas tirava do armário aqueles “mais especiais”. A quantidade de coisas de cozinha feitas de plástico, todas manchadas, arranhadas e que logo estragavam também era grande. Até mesmo eletrodomésticos, como aquele que “frita” sem óleo e que ganhei, mas só usei uma vez.

Tanta coisa que eu não usava, ou em quantidade extra, tanto dinheiro que eu poderia guardar, pagar as contas sem aflição. E uma reflexão profunda com questões como: por que sinto vontade de comprar tanto?

Essa reflexão de modo mais amplo vale para outro momento, até porque é necessário conversar sobre quem pode comprar e o que pode comprar. O tema desse texto, então, é literatura. É como posso ser escritora, minimalista e ter livros.

(Essas prateleiras da foto são minhas prateleiras reais. Esses são todos os livros que tenho até então. Os livros escritos por amigos próximos e os nos quais trabalhei estão num nicho pequeno no escritório. Alguns dos livros dessas prateleiras pretas já estão em processo de saída. Estou com peninha de desapegar de alguns de poesia, mas chego lá em breve.)

 

O pessoal que me segue no Instagram começou a perguntar frequentemente sobre esse ponto específico. Para muita gente, é até fácil compreender como só tenho três calçados, cinco blusas, três calças, como só compro produtos apenas quando o que estou usando já está acabando, entre outras coisas. Mas como leio? Eu compro livros? Se sim, tem limite? Se eu não acumulo coisas e não tenho as famosas “coisas que um dia vai que uso”, como ter uma estante cheia de livros?

Achei, então, que seria legal responder perguntas diretas enviadas para mim por quem me acompanha lá na rede social. As respostas estão abaixo, mas se você quer saber mais sobre Minimalismo, e ainda sobre minha experiência de vida minimalista, você pode me acompanhar por lá. Minha arroba em todas as redes é @jaridarraes.

Então vamos:

 

1. Como ser apaixonada por livros, trabalhar com livros, mas não ter muitos livros?

Eu já tive muitos livros, tantos que precisei comprar uma estante extra e ainda assim um número enorme de livros ficava espalhado pela casa e guardado em lugares que nem eu mesma via. Demorei para pensar sobre minha relação com os livros e com o espaço que eles ocupam e como são desperdiçados. Foi a última área da minha vida em que consegui aplicar o Minimalismo. Faz sentido, né? Meu trabalho depende de livros. E eles são objetos pelos quais eu me apegava intensamente. A visão de grandes “obras completas”, de livros de poesia, de livros de não-ficção, era uma visão muito bonita. Eu olhava para minha casa e via quantos livros já tinha lido. É uma sensação boa. Mas eu não tinha mais espaço e, bom, digamos que 95% daqueles livros estavam ali parados para sempre, a menos que algum amigo pedisse emprestado. Muito raramente pediam.

 

2. Como eu mudei minha relação com os livros?

Um dia estava ouvindo um podcast sobre Minimalismo (The Minimalists, recomendo, caso você entenda inglês) e uma pergunta foi jogada como estratégia para saber o que manter em casa: se acontecesse um incêndio em sua casa e tudo fosse destruído, o que você compraria de novo? Essa pergunta foi tudo.

Eu já não tinha coleções, já não tinha pratos extras (só os que uso todos os dias e que servem também para visitas), já não comprava sapatos sem necessidade, enfim, já estava tudo aprumado. Exceto os livros. Mas essa pergunta me ajudou a romper o apego completamente.

A verdade é que eu não compraria de novo a maioria dos livros que eu já tinha.

Não porque fossem livros ruins ou porque não gostei da leitura, mas porque a leitura já estava concluída e eu sabia que não revisitaria. Em anos e anos de tantos livros na estante, por mais que eu falasse que manter este ou aquele era “pra consulta, um dia quem sabe” ou “porque é muito lindo esse projeto gráfico”, eu não tinha lido de novo e nem pretendia. Eu não tinha e nem tenho tempo para reler muitos livros. Preciso conhecer coisas novas, ler inéditos, editar obras dos outros, escrever, participar de eventos. E se eles seriam apenas enfeites, por que eu manteria tudo aquilo? Era um sentimento de orgulho? Era a necessidade de que entrassem na minha casa e vissem quanta coisa eu li e, portanto, eu só poderia ser uma pessoa inteligente que entendia de livros?

Essas e outras perguntas mudaram minha perspectiva sobre os livros. Compreendi que, na minha vida, eu poderia comprar livros, ler, me dar um tempo para refletir se eu realmente precisaria daquele livro de novo, se ele realmente seria relido até mesmo por prazer, e escolher manter ou passar pra frente.

 

3. Quais são os critérios para comprar livros?

Bom, eu recebo muitos livros “gratuitamente”. Por ter uma rede grande e por que as pessoas esperam indicações minhas, as editoras me enviam muitos livros. Tantos que vários deles não me interessam nem um pouco, não têm nada a ver com o que gosto de ler ou com meu trabalho. Muitos outros são livros que eu teria comprado caso não tivesse recebido. Mas aí entra um ponto bem importante, porque se eu fosse comprar tudo isso com meu próprio dinheiro, e dividir as despesas da vida com a compra de livros, seria ainda mais importante repensar minha relação com esses objetos tão incríveis. Porque haja dinheiro, né?

Quando quero comprar livros, levo em consideração o valor daquela leitura na minha vida. É a oportunidade de conhecer um estilo novo? Uma autora independente que deve ser apoiada? Uma obra que está super famosa, elogiada, e que pode me ensinar algo? Um tema ou autor que estou com vontade de ler, agora, por prazer? Por que eu quero aquele livro? Se eu o tivesse em mãos, eu estaria o lendo neste momento? Por que eu preciso daquele livro? Claro que nem sempre é tão simples de responder e acredito que (quase) toda leitura é valiosa. Por isso, para mim, é ainda mais importante não deixar que tanto conteúdo relevante fique 1) juntando poeira; 2) abarrotando os espaços; 3) pedindo organizações super cansativas de tempos em tempos etc. Para mim, não vale a pena.

Assim como muitas outras áreas da minha vida, eu compro o que eu percebo como necessário. Notem que isso é subjetivo, que varia de pessoa para pessoa, então essa reflexão é realmente algo sem receita exata. O que posso aconselhar é que leve em consideração sua condição financeira, caso você até acabe com dívidas por não ter muito autocontrole quando livros entram no jogo.

 

4. Quais livros eu mantenho?

Eu mantenho o que passa na pergunta “compraria de novo se perdesse tudo?” e o que eu sei, sinceramente (olha o sinceramente), que vou reler. No fim das contas, os livros que mantenho são as obras de poesia que mais gosto (releio muito os livros de poemas), os livros dos amigos muito próximos, os que são autografados por amigos e pessoas que admiro muito (as vezes nem minha admiração é o suficiente para que o livro fique, porque eu não vou reler mesmo) e também os de não-ficção que faz sentido manter naquele período de tempo. Ou seja, se estou pesquisando sobre determinado assunto, aprendendo certo tema, enfim. Ele está sendo útil, importante, vai ser consultado várias vezes até um futuro próximo. Mas quando essa relação muda, é hora de deixar ir.

Deixo ir porque também penso que eles servem muito mais passando de mão em mão, de olhos em olhos. Então presenteio, faço doações e vendo. Uma das últimas “coleções” que vendi foi a de HQ’s.

 

5. Como eu acho que isso pode impactar as livrarias, autores e vendas no geral?

Consigo enxergar uma boa estratégia nessas de tirar os livros da minha estante. Porque muita gente não conhece autoras negras, nunca leu uma HQ feita por uma mulher libanesa ou africana, nunca leu poesia contemporânea e nem conhece editoras independentes. Quando dou um livro desses de presente, novas possibilidades se abrem para essas pessoas. Elas se interessam por aquele autor, aquele assunto, aquele país, aquela estética, aquela editora. E, assim como eu, partem para o próximo. Se o livro usado é vendido, parte dessas vendas pode virar dinheiro para comprar outra obra. Se a pessoa ganhou um livro que estava pensando em comprar, digamos que do Stephen King, o dinheiro que não foi gasto pode ser direcionado para a compra de outro, como um livro da Toni Morrison. O livro que circula, na minha visão, multiplica a relação das pessoas com os livros muito mais do que meus livros para sempre nas minhas prateleiras.

 

6. O que eu acho de ebooks e coisas como Kindle?

Há alguns vários anos, tive um Kobo. Depois, ganhei um Kindle e tenho o mesmo até hoje – apesar de ter saído versão nova, que pode molhar, que não sei o que, mas eu não precisava de outro, não precisava trocar.

Compro bastante e-books, sejam eles vinculados a uma tal loja e dispositivo, ou em outros formatos e meios. Muitos autores independentes que quero conhecer e apoiar, aliás, só publicaram digitalmente.

Acho que essa é uma estratégia boa. Mas não quer dizer que eu não pense o Minimalismo também nessa relação. Seria muito tentador concluir que, porque não ocupa espaço físico na minha casa e não vejo o acúmulo, eu posso comprar e comprar e deixar tudo lá na fila de “ler um dia”. Essa fila de “ler um dia” é uma coisa que não tenho. No caso, especificamente com livros que recebo gratuitamente, se passou certo tempo, duas semanas, três, e o livro continua lá sem me despertar interesse, eu faço a cortesia de mostrar de novo nas minhas redes (eu quase sempre mostro quando recebo, só não mostro se for algo muito nada a ver mesmo) e presenteio ou faço doação.

Então, se até para o que é de graça eu não deixo ali no “daqui a cinco meses posso finalmente querer ler”, eu também faço isso com os que compro, com meu dinheiro, em formato físico e de ebook. Uso os mesmos critérios para escolher e comprar. E ainda não estou com minha biblioteca virtual complicada demais ao ponto de não lembrar que tenho livro x ou y. Mas, quando isso acontecer, vou mudar essa situação.

E é por isso que não acho necessariamente que o digital substitui o físico e é “melhor” pra quem deseja viver uma vida com o necessário, o suficiente e o que traz valor profundo. Ser consumista de ebooks pode ser até mais compulsivo do que ser consumista de livros físicos. Tudo depende de quem você é, de como é sua relação com os livros, do que está buscando preencher com o consumo, do que deseja provar (para os outros ou para si).

Como é impactante e importante ler tudo o que você compra, indicar o que você gostou, divulgar as autoras e autores, possibilitar que pessoas sem condição financeira tenham acesso a esses livros que você amou ler.

De novo, eu realmente penso que os leitores se multiplicam e as obras se espalham muito além daquele um. Quem pode, vai comprar outro diferente, porque também amou aquele autor. Quem não pode, vai conseguir em bibliotecas comunitárias, projetos de leitura, e vai indicar, vai postar nas redes. Enfim. Acho que dá para entender mais ou menos.

 

7. Como guardo referências de livros dos quais desapeguei?

Tento comprar livros de não-ficção mais na forma de ebook porque é mais fácil marcar trechos. Mas muitas editoras não fazem ebooks e eu ainda quero manter aquela obra porque ela serve para meu trabalho. Mas, assim, serve de verdade. Porque muitos não serão consultados tão cedo e eu não me sinto confortável mantendo “vai que”.         

Se eu precisar daquelas referências de novo, tento pegar emprestado, achar trechos e abordagens específicas em artigos pela internet, busco em bibliotecas. Como não baixo livros “piratas”, se eu não conseguir por nenhum desses meios, eu compro de novo. Mas nunca aconteceu. Eu me dou o tempo que necessito para ter aquele livro, usar enquanto preciso e avaliar se é necessário manter comigo ou não.

Repito: isso depende de cada pessoa, de cada trabalho e assim vai.

 

8. Isso vale para meus próprios livros? Eu gostaria de saber que alguém comprou e passou pra frente?

Gostaria bastante. Na verdade, muita gente me conta que fez isso quando rola um evento e estou escrevendo dedicatórias. A pessoa tinha o Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, por exemplo, e achou que aquela professora, aquela que não pode comprar, seria muito mais beneficiada. Porque usaria em sala de aula. E acho isso maravilhoso.

Quem gostou de uma obra minha ao ponto de sentir o desejo de dar o livro para outra pessoa, ainda mais levando em consideração como nos apegamos aos livros, está me fazendo um grande elogio e um imenso favor. Está apoiando meu trabalho para que mais pessoas conheçam e, quando puderem, procurem meus outros livros. Se é do ponto de vista das vendas, que pra mim é muito importante, é claro.

Do ponto de vista do ideal, de como quero ser lida, eu acho isso realmente incrível. Muito obrigada, você que faz meus livros circularem por aí.

 

9. Mas e o apego? O sentimento de conforto? Os outros muitos sentimentos envolvidos?

Olha, isso é coisa para cada um pensar e responder. Se não quer desapegar, não desapegue. Se não consegue agora, quem sabe depois consiga. Se pra você o Minimalismo não faz sentido, não serei a pessoa que vai te encher o saco. Apenas compartilho minha experiência e minha visão. Se ela pode contribuir um pouco, me sinto muito feliz. O assunto Minimalismo e Livros não cabe nesse único texto, então certamente pretendo escrever mais em breve.

 

10. Como desfazer essa ideia de que livros são sagrados?

Se você não quer mais ter essa relação com os livros, acho que coloquei algumas questões, a partir das minhas escolhas, que podem fazer parte do seu processo.

Se você acha que, sim, livros são sagrados, cultive o seu sagrado da melhor maneira possível. Se você tem dez estantes de livro e gosta de limpar e organizar até mesmo como hobby, quem sabe compartilhar seja parte desse sagrado. Não quer dizer tirar tudo da sua casa permanentemente, mas pode querer dizer tirar temporariamente e contribuir para que outras pessoas possam ler também. Depois você pega de volta. Não esqueça de pedir, tem gente que nunca mais materializa seu livro na sua frente, hahaha.

E se você acha que um estilo de vida e uma filosofia minimalista podem te ajudar financeiramente e psicologicamente, não precisa de muita coisa para começar essa mudança. Várias perguntas podem iniciar essa caminhada. Por que preciso disso? Por que quero comprar isso? Eu já tenho algo que cumpre essa função? Qual será minha frequência de uso dessa coisa? Tenho espaço? Esse dinheiro gasto aqui vai prejudicar o pagamento da conta de luz ou da feira do mês? Sou uma pessoa compulsiva e consumista? Qual a origem desses comportamentos? Vixe, tem tanta coisa pra pensar...

 

(Se eu não respondi à pergunta que você me enviou, provavelmente vou escrever outros textos.)

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

Jarid Arraes

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nome, As lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

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