Sobre o incêndio do Museu Nacional, por Nuccio Ordine

Passadas duas semanas do incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, não podemos deixar de reforçar o valor da instituição para a história do Brasil e da humanidade como referência em pesquisa e conhecimento. Com o incêndio, a perda da memória, da cultura, da nossa história passada, é irreparável. Mas as consequências para o futuro são ainda mais devastadoras sempre que decidimos ignorar nossas origens e desprezar o valor do conhecimento.

Em A utilidade do inútil, Nuccio Ordine aponta claramente os erros que cometemos como governantes, cidadãos e sociedade, em geral, ao não investir e dar prioridade à cultura e aos espaços como bibliotecas, museus e instituições culturais.

Publicamos aqui a entrevista na íntegra concedida ao jornalista Leonardo Lichote, do jornal O Globo, para matéria especial sobre o incêndio no Museu Nacional. Antropólogos, escritores e filósofos falaram sobre o papel da memória na construção de uma sociedade e sua história.

 

Por que a memória é importante?

Na mitologia greco-romana, a deusa da memória (Mnemosyne) ocupava uma posição de primeira grandeza: era a mãe das nove musas, isto é, de todas as artes e de todos os saberes. Perder a memória significa abrir mão de interrogar o passado para compreender o presente e prever o futuro. Por isso deixar que um incêndio destrua um museu ou uma biblioteca significa apagar, como que num golpe de esponja, séculos de historia. O incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro é um golpe terrível não somente para os brasileiros mas para o mundo inteiro: uma pintura, um fossíl antigo como Luzia e um documento histórico são patrimônio da humanidade. A literatura, a música, a filosofia, a arte e a pesquisa científica sem fins lucrativos são os únicos instrumentos que temos para tornar a humanidade mais humana e combater o câncer da corrupção. É por isso que os museus e as bibliotecas são celeiros nos quais se conservam sementes de conhecimentos, essenciais especialmente para os terríveis invernos do espírito.

 

Por que é difícil convencer a sociedade a compreender a importância da memória?

Porque estamos vivendo agora um terrível inverno do espírito: os únicos valores que contam são o dinheiro, a velocidade, a virtualidade. Míopes, pensamos que importa somente o futuro, não o passado. Estamos construindo um mundo desumano, fundado nas desigualdades: 82% das riquezas mundiais está na mão de 1% da população. O desprezo que os políticos – cada vez mais ignorantes – nutrem pela cultura, pela educação e pela beleza é filho de uma sociedade na qual se pensa, erroneamente, que a dignidade do homem pode ser medida com o dinheiro. O incêndio do Museu Nacional é realmente a “crônica de uma morte anunciada”: não prover de recursos essas instituições, como está acontecendo também com escolas e universidades, significa destruir o futuro do país.

 

A memória é hoje tema de um debate político e social?

É preciso distinguir entre “memória” e “raízes”. A memória nos ajuda a conhecer (por meio de uma pintura, um livro, uma obra de arte) os grandes valores que unem toda a humanidade: o gênero humano, com suas diferenças legítimas, compreendido como um “único” continente. Em contrapartida, as raízes são instrumentalizadas para construir uma perigosa narrativa da historia fundada sobre uma ideia estática de “identidade” (penso nos nacionalismos europeus que estão gerando formas perigosas de racismo). Homero não é grego, assim como Jorge Amado não é brasileiro. A cultura é um patrimônio universal que educa para nos tornarmos cidadãos do mundo.

Leia a matéria publicada no segundo caderno, do Globo.

Em A utilidade do inútil, Ordine mostra como a lógica utilitarista, o culto da posse, e os atuais mecanismos econômicos, põem em perigo a criatividade e diversos valores. Os saberes considerados "inúteis" são indispensáveis para o crescimento da humanidade. A obra traz diversas referências e citações de autores clássicos, além de um ensaio do educador americano Abraham Flexner, pela primeira vez traduzido para o português.

De acordo com o autor, útil é tudo aquilo que nos ajuda a ter uma vida mais plena e um mundo melhor. Para ele, as escolas e universidades deveriam se tornar centros de resistência a lógica do lucro e da pressa impostos no mundo em que vivemos, justamente porque o conhecimento e o aprendizado não podem ser apressados.

 

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