Trecho: "Apátridas", de Alejandro Chacoff

 

O dinheiro americano era simples. Sua cor e textura evocavam o mesmo tédio de Drexel Hill, nosso bairro na Filadélfia — o verde difuso dos pinheiros, as casas de tijolos idênticas e enfileiradas. O carpete bege macio e os estalinhos metálicos dos aquecedores. No inverno, neve caía e tudo ao redor embranquecia e perdia os contornos. A cor ia embora e alguns meses depois voltava. E essa renovação infinita e superficial, de as coisas mudarem um pouco e sempre voltarem a ser as mesmas, é algo que ainda relaciono com dólares americanos. As notas estão sempre novinhas, como se tivessem acabado de ser impressas; são lisas e gostosas de tocar. É estranho, mas elas têm um ar de inocência. Deve ser proposital, como quase tudo que os americanos fazem.

No voo para São Paulo, e depois para o Mato Grosso, minha mãe falou muito sobre o meu pai. Disse que ele já tinha admitido gostar do Pinochet (uma frase que na época não me dizia muita coisa); que ele não ajudava nem a própria mãe no Chile (ela morava na periferia de Santiago); que ele não sabia cozinhar. Falava como se não o conhecêssemos, como se não tivéssemos passado

Os dois ou três voos até o Mato Grosso foram tranquilos. Senti prazer em ouvir aquelas histórias sobre o meu pai. Eu nunca o compreendera bem; me parecia uma figura etérea e sem muitos contornos de personalidade. Era bom saber que tinha vivido aventuras romanescas, que tinha um passado do qual eu não fazia ideia. Na Filadélfia, ele ficava sempre ali na sala, com seu ar distraído, lendo o Philadelphia Inquirer e o New York Times. Falava conosco num tom muito gentil, que, conforme crescíamos, se tornava cada vez mais obsoleto, por ser infantil demais.

Só quando ele comprava algo eu vislumbrava um ser mais autêntico e vigoroso. Comprava muito bem. Tinha uma assinatura bela e curvilínea para assinar cheques, e nos jantares fora, quando viajávamos para Manhattan ou New Haven para alguma conferência da minha mãe, ele arrancava as folhas do talão com uma rispidez bonita. Ou então dizia: “American Express”, tirando o cartãozinho e o levantando por alguns segundos até fitar o garçom, flertando com os limites de uma ofensa. Dava quarenta por cento de gorjeta, o que chocava os atendentes, sempre tementes a estrangeiros mãos de vaca. Minha mãe, mesmo depois do seu doutorado em linguística, ainda ficava apreensiva com o ritual americano do comércio — os atendentes recitando-lhe opções de cafés e doces numa voz rápida e sem inflexão, como se rezassem. Já meu pai havia nascido para esse ritual. “Me dê um minuto, por favor”, dizia, com elegância hostil, quando alguém tentava apressá-lo. Naqueles anos, passei um bom tempo buscando decifrar o logo misterioso do seu Alfa Romeo. Pensava, vagamente, que o desenho da cobrinha verde, cruz e coroa talvez desse alguma pista sobre a sua essência. Não tínhamos condições de comprar aquele carro de merda, minha mãe dissera; era melhor ter ficado com o terreno.

“Conta mais, mãe, conta tudo sobre ele”, minha irmã falou, enquanto bocejava. Estava sonada e ao mesmo tempo animada com as histórias; e seguimos ouvindo minha mãe enquanto o avião atravessava a escuridão. Jantamos; as luzinhas do avião se apagaram uma a uma; e o tom da minha mãe, amaciado pela digestão, se enterneceu — as peripécias desprezíveis do meu pai ganharam a melodia sonolenta de um conto de fadas. Adormeci enquanto ela fazia uma lista dos bens dela que ele tinha vendido, um a um.

Romualdo, o motorista do meu avô, nos buscou no aeroporto. Deu explicações ofegantes à minha mãe, enquanto punha as malas na caçamba da F-1000 — a mesma que meu tio usava para transportar caixotes de dourados, pintados e pacus no gelo. “Betinho foi pescar e precisou da caminhonete de quatro portas, e o Comunista precisou da Belina para ir ao médico. Tentei pegar o Santana, mas tão usando pra levar e trazer coisa lá da festa de são Benedito. O Logus do Betinho tá no conserto.” Minha mãe parecia não estar ouvindo. Havia um som distante de britadeiras e martelos no estacionamento do aeroporto, volta e meia abafado pelo trovão escandaloso de algum avião que pousava. “Puta que o pariu, Romualdo”, ela disse um tempo depois, numa voz calma e resignada. “Não adianta combinar nada com vocês.” Botou minha irmã no banco da frente da caminhonete e pediu a ele que me explicasse como segurar bem na caçamba para não cair.

Havia um cheiro forte de queimada no ar, e receber as rajadas de vento quente na cara era prazeroso. Por longos trechos vi só casas esparsas, todas com teto de palha, interrompidas vez ou outra por algum outdoor melancólico de drogaria ou cursinho pré-vestibular. Torci para que o sol não descascasse minha pele, para que meus tios e primos não caçoassem de mim depois. As árvores miúdas e as planícies terrosas evocavam uma viagem de carro que tínhamos feito certa vez ao Meio-Oeste americano. “Eu e minha família somos de um lugar que é mais ou menos como Iowa”, minha mãe havia dito a Myriam Thornton, sua orientadora na Universidade da Pensilvânia, a quem ela nunca se referia pelo primeiro nome. Thornton era gentil e seca, tinha acreditado na minha mãe e a incentivado com muitas verbas de pesquisa; mas, naquela noite, enquanto estávamos sentados ao redor da mesa de jantar — meu pai cortava tiras de espinafre e pedacinhos de alho, batendo a faca na madeira —, ela começou a rir de forma estridente. E meu pai, sempre atento a essas pequenas oportunidades, começou a descrever o lugar de nascimento da minha mãe com um ânimo sarcástico — falou do calor, da falta de voos diretos, da música sertaneja que tocava numa altura ensurdecedora nas pracinhas. “Aquilo lá é terrível, terrível, você não tem ideia, Myriam.” Falava no seu inglês estranho, um sotaque meio britânico que, hoje, desconfio que ele inventou para si mesmo. O rosto da minha mãe se contorceu numa fúria muda; o único jeito de ela sentir saudades da sua terra era quando ele falava mal de lá. Mais tarde, ao som baixo de um disco natalino de Mario Lanza, ela quebrou alguns pratos na parede da cozinha.

Agora sua risada aguda chegava a mim diluída pelas rajadas de vento. Olhei pela janelinha da caçamba e vi que Romualdo abria e fechava a palma da mão direita, como se falasse de alguém que falasse muito. Ele tacou um saco de pipoca pela janela; depois jogou uma latinha de Coca-Cola, que rodou e quicou no asfalto até ser destroçada por um caminhão que vinha atrás. Eu fitava minha mãe para checar sua reação (na Filadélfia, nos instruía obsessivamente a nunca jogar lixo na rua); mas ela seguia tranquila, rindo e conversando, minha irmã dormindo no seu colo.

Quando chegamos na Otiles Moreira, a rua do meu avô, um grupo de meninos, todos de chinelo e sem camisa, interromperam o bate-bola para deixar a caminhonete passar. Ficaram me olhando enquanto o portão de ferro abria. Eu lembrava de alguns rostos, mas fingi me interessar pelas malas na caçamba. O portão demorou uma eternidade para abrir. Quando a caminhonete finalmente avançou, alguém mais distante na rua gritou: “Ei, como é que fala buceta em inglês?”, e umas risadas benignas ecoaram.

Eu também ri, mas meu riso era nervoso. Sentia um misto de vergonha e orgulho pela nossa volta ao país (dessa vez não eram só férias), e pela casa imponente e feia do meu avô. Vergonha e orgulho: sentimentos constantes naquela época, indissociáveis. O portão de ferro longuíssimo e a antena parabólica toda enferrujada davam à casa um ar de autoridade antiestética, como se a feiura ali fosse meio intencional, algo como um centro de detenção num país menor do Leste Europeu. No muro da frente, um muro de tijolinhos vermelhos, pequenas taturanas brancas subiam até o topo, caíam e depois subiam outra vez com esforço, Sísifos do cerrado. Nunca esqueci da vez em que meu primo pegou uma na mão, sem medo, e a esmagou até que um líquido pastoso brotasse. “Pronto”, ele disse. “Acabou a putaria.”

Meu pai demorou meses para nos ligar. “Oi, filhinho, tá gostando da escola?”, disse, com sua voz obsoleta. Ninguém sabia direito onde ele estava morando desde a separação. Quis conversar em inglês comigo, não sei bem por quê, e me senti um pouco estúpido ao fazer isso no corredor, onde parentes e os empregados do meu avô transitavam. Não tínhamos muito que conversar. Fomos e voltamos no assunto da escola nova.

Contei a ele que parecia uma prisão (minha ideia de prisão vinha dos seriados americanos que eu via na Filadélfia), com corredores pequenos e escadas muito estreitas, grades em todas as janelas, e um pátio de concreto. Falei sobre a maior novidade que eu aprendi por lá: o Brasil era maior que os Estados Unidos. “Com o Alasca e o Havaí, acho que não”, ele me corrigiu. Um pouco para rebatê-lo, contei que a professora falou também que o Mato Grosso era maior que o Texas, o maior estado americano. Ela nos explicou que da capital do Mato Grosso até a capital de Goiás a distância era mais ou menos de mil quilômetros — a mesma distância entre Marselha, no sul da França, até a Normandia, no norte. Sem contar que cabiam várias Holandas, Bélgicas e Luxemburgos ali. “E o que se faz nesse espaço todo?”, meu pai perguntou, e notei que seu tom tinha mudado.

Depois daquela ligação, repleta de chiado e de vozes que cruzavam a linha (as vozes, alegres e verborrágicas, tornavam nossos silêncios ainda mais desconfortáveis), meu pai começou a ligar toda semana. Nunca disse onde estava. Mas, de todo modo, nos falávamos cada vez menos — ele dava um oi rápido para mim e para a minha irmã, e em seguida dizia para chamarmos meu avô. Minha mãe nunca mais falou com ele; ela cortara todo contato, e pedia ao meu avô que fizesse o mesmo. Se irritava quando, da mesa da sala, ouvia as risadas e os espasmos catarrentos do pai, divertindo-se com alguma anedota do ex-genro.

Meu avô guardava dinheiro na terceira gaveta do seu armário. Eram bolos e mais bolos de notas amarradas com elástico, todas engordando algum envelopinho branco. Cada envelope tinha um título escrito numa letra imensa e feia (me surpreendia que a letra de uma pessoa mais velha fosse tão parecida com a minha). Alguns dos títulos eram simples (“Posto”, “Cartório”), outros mais crípticos (“Ditinho p Maria e 3 Sto Antonio”, “obra Cristo Rei”), e outros mais gregários, românticos (“Turma do Dom Bosco”, “Festa de são Benedito”). Eram muitos envelopes. Meu avô arrastava suas sandálias puídas pelo quarto e se agachava com dificuldade para pegar as notas; eu gostava de vê-lo separando e organizando o dinheiro. Certa vez, ele perguntou se eu queria ajudá-lo a contar. Mas quando notou meu fascínio com as cédulas, a forma como eu estudava e escrutinava a superfície de cada uma, pareceu se assustar. “Não vale nada, isso aí”, disse, desconversando, puxando as notas de volta. “Dólar vale muito mais.”

Esse dinheiro mudava o tempo todo. Nas férias, quando voltávamos ao país, sempre havia alguma moeda nova em circulação (cruzados novos, cruzados velhos, cruzeiros — embora meu avô, com certo instinto pragmático, se referisse a tudo como “réis”). Mas mesmo as notas novas pareciam todas velhas. Tinham a cor gasta, a textura frágil, e eu tinha medo de segurá-las com muita firmeza porque parecia que elas iam se dissolver na minha mão. Tampouco dava para ver bem o rosto das pessoas nas cédulas. Os contornos e as linhas da face tinham se perdido no tempo, pareciam todos fantasmas (o que de fato eram). Na superfície das notinhas, às vezes havia poemas do Drummond e do Neruda e outros poemas amadores escritos à caneta (o sentimentalismo e a ansiedade dos versos crescendo à medida que o valor diminuía). Uma vez, já mais velho, vi o desenho de uma suástica. Colocado entre outros dois desenhos — um pinto jorrando esperma e um coraçãozinho alado —, o símbolo perdia algo da sua ominosidade. Assim as ideologias políticas chegavam ao Mato Grosso: todas arrebentadas e distorcidas no transporte.

Um dia meu avô me deu alguns envelopes e pediu que os guardasse na mochila. Romualdo passou para nos buscar com a caminhonete, e seguimos até Santo Antônio. Lá paramos na casa de uma tia-avó, e eu distribuí os envelopes a parentes sentados na varandinha dela, aprendendo e imediatamente esquecendo o nome de cada um conforme entregava o bolo de dinheiro. “Deus te abençoe”, eles me diziam, “agora fala alguma coisa em inglês para o primo ver.”

Antes, no caminho para Santo Antônio, a caminhonete tinha saído duas ou três vezes da rota principal e se desviado para estradinhas de terra mais estreitas, cheias de poças lamacentas sobre as quais pairavam nuvens de mosquitos. Moradores das casas — umas eram blocos de cimento sem pintura; outras, barracos de madeira com teto de palha — levantavam os olhos e nos fitavam com uma expressão inerte, parando de chupar manga ou de martelar pregos laconicamente num pedaço qualquer de madeira, e até que a caminhonete passasse, não voltavam ao que estavam fazendo. Numa ou noutra casa, Romualdo encostava. Enquanto meu avô ficava na caminhonete ouvindo algum jogo do campeonato estadual na rádio, bem baixinho, como se o volume diminuído o ajudasse a se concentrar, ele descia. Abria a caçamba e tirava sacas de arroz e farofa, sacões de verdura e bocaiuva, mudas de coentro. Abria também os caixotes mais pesados, cheios de gelo. De lá tirava pintados e pacus (os peixes estavam sempre congelados em posições assimétricas, com o rabo encurvado, como se tivessem sido cristalizados enquanto nadavam), e pernas de carneiros e cabritos (os músculos sinuosos e cinzentos dos bichos me davam uma tristeza difusa). Um cheiro terroso e ácido, meio apodrecido, tomava conta de tudo. Um monte de crianças se aproximava da caminhonete, e Romualdo, irritado pelo esforço físico, entoava uma risada agressiva. “Vão ficar olhando que nem bocó? É tudo pra vocês, neném…” Puxava então os caixotes mais pesados e saía trombando com as pessoas, como se quisesse derrubá-las. “Sai, sai, sai, se não for ajudar deixa eu passar, caralho.” Exausto, suando em bicas, tirava a camisa, deixando à mostra na sua pele preta duas manchas cor de caramelo, entre a costela e a cintura. Eram marcas que lhe davam uma distinção ambivalente, um pouco como aquelas manchas grandes e escuras de nascença onde brotam dois ou três fios de cabelo — fui descobrir depois que eram cicatrizes de bala.

***

 

Verificado

Alejandro Chacoff nasceu em Cuiabá, em 1983 e mudou-se para os Estados Unidos aos dois anos de idade. Viveu também no Chile, Inglaterra e Argentina, antes de voltar para radicar-se no Rio de Janeiro, onde, desde 2016, é crítico de literatura e ensaísta da Revista Piauí. É também colaborador de publicações como The New Yorker, n+1, The Guardian e The Atlantic. "Apátridas" é o seu primeiro romance.

Neste post