Três vezes Trevisan

22/01/2020

Por Tobias Carvalho*

Renato Parada/ Divulgação

 

Até agora, os livros de João Silvério Trevisan têm vindo até mim.

O primeiro foi Devassos no Paraíso, em uma edição antiga, que ganhei de presente de uma colega de oficina de escrita. Ela achou que o livro tinha a ver comigo (e tinha). O calhamaço, reeditado pela Objetiva em 2018, já é há tempos a grande referência da historiografia da homossexualidade no Brasil. É estranho e necessário se deparar com a própria história; saber que as conquistas não vieram de graça; perceber que, mesmo que eu não tenha vivido as perseguições a homossexuais na ditadura, a história deles também é minha.

Então veio Pai, pai. Um amigo que trabalhava no setor de cultura de um jornal de Porto Alegre conseguiu uma prova antecipada. Primeiro ele me emprestou o livro. Depois que li, pedi para não devolver. Era outra história que me pertencia, mas dessa vez de uma maneira mais pessoal. Não é à toa que a relação com o pai aparece na literatura há séculos. Vivos ou mortos, os pais assombram, e esse espectro talvez se torne mais intenso para LGBTs. A escrita do romance é sincera e não chama atenção para artifícios. É apenas um escritor com as veias à mostra. E digo “apenas” mirando no maior dos elogios.

Já era para eu ter aprendido a lição. Mesmo assim, a Companhia me fez o favor de enviar A Idade de Ouro do Brasil pelo correio.

Resumindo o enredo: em 2009, no auge do governo Lula, um partido de direita está sendo formado e um dos idealizadores chama um grupo de travestis para divertir os políticos em uma casa isolada.

Publicado no primeiro ano do governo Bolsonaro, o romance cria um microcosmo de viadagem e diálogos em pajubá, o vocabulário de comunidades trans/travestis brasileiras. Trevisan aponta para a contradição moral no país, que já não é de hoje. O narrador sisudo em terceira pessoa chega a contrastar com os diálogos, daqueles que dá vontade de ler em voz alta (expressões como “gentem”, “beeecha” e “dar a elza”).

Aí talvez esteja o maior mérito de A Idade de Ouro do Brasil: o humor, usado como desconstrução de discurso e resistência a tempos adversos.

Já tive a oportunidade de ir a três eventos literários com João Silvério Trevisan. Nas três ocasiões, compreendi que ele é uma força da natureza tanto nos debates quanto nos livros. É notável a maneira como ele articula ideias, relaciona informações sobre o passado e projeta um futuro para a nossa sociedade. Ele consegue capturar a atenção indivisa do público como um guru. (Em um desses eventos, ele me chamou de Tiago durante todo o bate-papo. Nem eu nem ninguém corrigiu. Naquele momento eu era Tiago e pronto.) A visão de Trevisan é simples mas não simplista: o que os LGBTs têm como contribuição à sociedade é amor. É alegria. É afeto.

Natalie Wynn, conhecida por seu canal ContraPoints, se tornou famosa no YouTube por publicar vídeos-ensaio desconstruindo conceitos da extrema-direita estadunidense. Ela se utiliza de um esquema socrático de perguntas atrás de perguntas para debater ideias em vez de apenas expor opiniões. Falando sobre a crítica ao gênero como construção social, ela cita o exemplo de um vídeo que viralizou nos Estados Unidos, em que uma mulher trans (Stephanie Yellowhair) é humilhada por policiais. Eles fazem piada com a maquiagem dela, usam de propósito o tratamento no gênero masculino e ainda a chamam de “crossdresser”. Em um determinado momento, Stephanie vira para os policiais e diz: “Perdoem minha beleza”. Para Natalie Wynn, essa é a essência da postura trans: resiliência e altivez mesmo nas situações mais hostis.

É isso também o que João Silvério Trevisan tem a dizer. Mesmo sofrendo todo tipo de violência, não oferecemos violência. Por enquanto, oferecemos apenas afeto. E é de afeto que a sociedade precisa.

Não quero entrar em território de spoiler, mas é bom dizer que A Idade de Ouro do Brasil não é só irreverência e espirituosidade. Para mim foi uma surpresa descobrir Trevisan fazendo projeções sobre o futuro mesmo dentro do universo ficcional e apontando caminhos não só através do amor. O Brasil foi, afinal, fundado com violência. Deixá-la de lado seria uma verdadeira revolução.

Mas isso já é outra discussão. Entre as várias reflexões que A Idade de Ouro no Brasil me provocou, a principal é a seguinte: já está na hora de eu ir atrás de outros livros de João Silvério Trevisan.

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Tobias Carvalho nasceu em Porto Alegre em 1995. Seu livro de estreia, As coisas, foi vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2018.

 

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