Um dia sem ele

12/05/2022

 Ronaldo Silva/Futura Press/Folhapress

 

No filme Um dia sem mexicanos (2005), o cineasta Sergio Arau imagina o caos social que se instalaria na Califórnia caso os imigrantes desaparecessem de um dia para o outro e não sobrasse ninguém para fazer o trabalho braçal no Estado mais rico dos EUA. Frequentemente penso no efeito inverso no Brasil: na paz que se estabeleceria caso nossa imprensa decidisse, uma vez por semana, que fosse, ter um dia sem ele.

Não falarei o nome dele, porque é disso que ele se alimenta. A cada dia uma atrocidade verbal, a cada dia um ataque às instituições, desdito logo em seguida, para ser reafirmado na sequência, então novamente desdito e reafirmado. Nunca fiz a conta, mas desde 2018 os jornais parecem ter duas editorias em disputa: a do “Ele ataca e...” e a do “Ele recua e...”, possivelmente acumulando ambas o mesmo número de manchetes. O que importa nisso tudo, claro, é que ele monopoliza o noticiário e transforma a mídia, que se julga intelectualmente superior a ele, em seu brinquedo.

Já em 1951 Hannah Arendt havia capturado a essência dos regimes totalitários, que é “só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo que os rodeia”. Essa receita tão antiga foi incorporada ao neofascismo do século 21, tendo seu ápice em Donald Trump. Lembro-me de um jornalista americano me dizendo sobre seu presidente que “ele está sempre duas matérias na nossa frente”. Historiadores da mídia talvez expliquem no futuro por que diabos, dado o diagnóstico tão óbvio do meu colega, a imprensa americana precisou de quatro anos e uma tentativa de golpe de Estado para cortar a transmissão de uma fala de Trump.

Os meios de comunicação brasileiros têm menos justificativa ainda. Nós contamos com algo que os americanos nunca tiveram, uma bola de cristal. E não era uma bola de cristal qualquer: era o New York Times. Quem lesse o Times e outros jornais dos EUA desde novembro de 2016 poderia prever com precisão como a banda tocaria por aqui a partir de 2019. E, no entanto, como a proverbial mariposa rumo à lâmpada incandescente, nosso noticiário segue atraído pela radiação maligna que emana do Palácio do Planalto. E não falha em se queimar nenhuma vez.

Mil justificativas para esse comportamento compulsivo já foram dadas por editores e ombudsmen nesses três anos e tanto. “O homem é Presidente da República e, portanto, tudo o que ele diz e faz a princípio é notícia”. “É preciso expor das barbaridades e da inépcia de um líder eleito”. “É preciso registrar para a história”. “Jornalista não pode ter um lado”, escreveu recentemente um barão da mídia. E, a minha preferida, “se nós não dermos nossa concorrência dará”.

Todos esses argumentos são carregados de um dogmatismo relictual, uma idealização fóssil sobre o que foram o jornalismo e os jornais até os anos 2000 a.Z. (antes de Zuckerberg). Em biologia, estruturas e comportamentos que não servem mais à realidade atual de uma espécie são chamadas de “maladaptações”. O comportamento dos nossos meios de comunicação diante da mudança de gramática imposta pelo neofascismo é profundamente maladaptativo.

Afinal, como os jornais não se cansam de repetir, ele não governa. Se não governa, não tem nenhum plano para resolver problemas como inflação, desemprego, educação e segurança. Logo, nem tudo o que ele defeca pela boca diz respeito a decisões administrativas que impactam a vida dos brasileiros. Tudo precisa ser noticiado, todos os dias?

Como já mostraram à exaustão especialistas como Isabela Kalil e Lori Regattieri, protoautocratas como o inominável aplicam um golpe de aikidô permanente nos jornais, usando a energia do adversário para derrubá-lo. Como ele sabe que tudo o que disser será noticiado, usa a mídia tradicional, que de saída assinala ser uma inimiga a extirpar, como caixa de ressonância e validadora de suas atrocidades. Com uma paulada só, alimenta suas bases nas redes sociais com o selo (e os links compartilháveis) da grande imprensa, aumenta o alcance de suas mensagens, atiça os tios do zap contra a “Globolixo” e a “Falha de S.Paulo” e amplia seu recall eleitoral. Mantém-se em movimento e transmite movimento a tudo que o rodeia.

A fobia da parcialidade, outra maladaptação do jornalismo deste século (e mais uma muito bem aproveitada pela sofisticada comunicação da extrema-direita), desequilibra ainda mais a balança em favor do verme: após três anos e meio, 700 mil mortos e várias tentativas de golpe, muitos títulos apenas reproduzem suas declarações. Desde a época da “escolha muito difícil”, quando o maior jornal do país se recusava sistematicamente a chamá-lo de “extrema-direita”, passaram-se quase dois anos até que um editor de primeira página tomasse coragem para usar o verbo “mente” após “ele” numa manchete.

E assim chegamos a um tempo em que, cinco meses antes da eleição mais importante da Nova República, normaliza-se a ideia de que ele pode ser reeleito como se fosse apenas mais um candidato, ou, pior ainda, de que pode não haver nem mesmo eleição. Essa codependência precisa acabar. Em relacionamentos tóxicos desse tipo sempre morre alguém, e não é ele.

Volto, portanto, à proposta modesta de um Dia Sem Ele, assim como o Dia Sem Carro e a Segunda Sem Carne. Um dia no qual ele possa chamar Brilhante Ustra de herói e o deputado bombadinho de guerreiro do povo brasileiro e não leia uma linha sobre isso no dia seguinte. Um dia em que não precisemos ouvir no rádio platitudes sobre a economia, preconceitos contra minorias, desaforos a governos estrangeiros ou latidos contra ministros do Supremo. Um dia por semana no qual transmissões ao vivo com mentiras sobre as urnas eletrônicas sejam simplesmente cortadas pelas TVs.

Ainda há tempo para esse desmame, mas não muito. Pior que decidir não reportar o que diz o presidente é dar ao presidente o poder de decidir o que reportar. Esse dia no Brasil pode estar muito próximo.

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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