Um homem fabuloso

16/12/2016


Foto: Lygia Fagundes Telles

Amanhã, dia 17 de dezembro, Paulo Emílio Sales Gomes completaria 100 anos. 

Crítico de cinema, escritor e professor universitário, Sales Gomes foi um grande divulgador e apoiador do cinema nacional, fundando a Cinemateca Braileira. Sua obra começou a ganhar novas edições pela Companhia das Letras em 2015, primeiro com Três mulheres de três PPPs, composto de três novelas que têm em comum o narrador Polydoro, figura abastada da elite paulistana. Logo em seguida, foi lançado O cinema no século, antologia que engloba textos publicados em jornais e revistas de 1941 a 1970, dedicados aos grandes nomes do cinema e a movimentos nacionais e estrangeiros. Agora, no ano de seu centenário, acabamos de lançar Uma situação colonial?, uma coletânea de ensaios dedicados à produção cinematográfica brasileira. 

Para marcar o centenário, publicamos aqui no blog a apresentação deste último lançamento, escrita pelo sociólogo e professor Antonio Candido, um relato sobre a importância e contribuição de Paulo Emílio Sales Gomes para a cultura do nosso país. Leia a seguir. 

* * *

Paulo Emílio era um homem fabuloso, muito além dos superlativos. Quem o conheceu sabe disso, apesar da discrição extrema que havia no fundo de sua exuberância. Morto, faz lembrar o verso de Mário de Andrade: um sol quebrado. Eu o conheci no fim de 1939, quando ele voltava de um exílio, aliás, muito divertido na Europa, para onde fora no começo de 1937 depois de uma fuga aventurosa e pitoresca do presídio de Paraíso, que coroava um ano e pouco de prisão, começando em dezembro de 1935 no dia em que fez dezenove anos. Desde então, ficamos amigos e eu sofri a sua influência insinuante: em política, cinema, concepção de vida. Nós éramos de temperamento diverso, mas ele sabia aceitar e se dar aos outros com uma generosidade incrível, feita de interesse real pelo próximo, o que é raro.

Naquela altura, uma coisa marcada nele era a impregnação da cultura europeia, depois de dois anos e meio vividos em Paris com intensidade — seguindo cursos, vendo filmes, aprendendo teoria do cinema, lendo em todas as dimensões, conhecendo gente interessante.

Ao mesmo tempo tinha um grande apego e curiosidade pelo seu país, traduzidos no desejo de ação na cultura e na sociedade. Ele fundou o Clube do Cinema (mais tarde, fundaria a Cinemateca Brasileira) e pequenos grupos heterodoxos de reflexão ou participação política; e em 1944 se alistou na malograda Batalha da Borracha, vivendo tempos na Amazônia e percorrendo o Nordeste, numa época que andar pelo sertão era empresa que hoje não se avalia.

Lembro tais coisas para o leitor prestar atenção na dialética do pensamento de Paulo Emílio, que o levou aos poucos a uma posição que se firmou nos últimos anos e era inversa à dos tempos em que o conheci. Isto é: mergulhou de tal maneira na nossa cultura, que chegou a adotar como estratégia uma negação drástica da cultura vinda de fora. Ele sabia até que ponto ela já era também de dentro; por isso mesmo a combatia, como quem luta contra um inevitável, para chegar a alguma coisa milagrosa e mais autêntica.

Os estudos de Uma situação colonial? mostram até que ponto o seu pensamento era original e penetrante. Nada de propriamente filosófico, mesmo porque a abstração sistemática e a posição científica não o atraíam, como não atraíam o nosso grupo. O que ele tinha era a maestria singular de dizer o necessário através de tiradas e imagens certeiras, nascidas da experiência das artes, da literatura, e de uma curiosidade apaixonada pelas coisas da vida. Da aparente difusão de propósitos extraía a maneira de captar o essencial; e isto faz dos seus escritos uma verdadeira iluminação.

Escrever lhe custava esforço. Não que não dominasse a palavra; a sua concatenação verbal era, ao contrário, prodigiosa. Mas porque só escrevia o que pensava e sentia; e queria apresentá-lo de maneira mais lucidamente autêntica. Além do mais, desdenhava a facilidade das modas, às quais não se submetia, dizendo com liberdade soberana o que lhe passava pela cabeça, da maneira que lhe parecia mais justa. A sua escrita era laboriosa porque não se baseava em clichês nem aproveitava o sulco batido. Talvez por isso mesmo ficasse tão desconfiado, achando que não tinha conseguido dizer o que era preciso, e que o mais importante tinha ficado de fora.

A publicação geral dos seus escritos, na maioria dispersos, vai mostrar que ele foi um dos nossos ensaístas mais coerentes e profundos. Vai mostrar como disse coisas de tal modo indispensáveis, que não o ler é ficar privado de uma experiência intelectual importante para esclarecer problemas da cultura brasileira. Porque, falando quase sempre de cinema, por meio dele Paulo Emílio fala da arte, da sociedade, do homem — sobretudo os do Brasil.

* * *

Uma situação colonial? já está em todas as livrarias. 

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog